terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Execução de Alimentos em face da Reforma Processual Civil na Execução

Os alimentos são dotados de carga máxima de direito fundamental, sendo o pronto pagamento medida essencial para garantir a sobrevivência do alimentando. Ocorrendo inadimplência, deve o Judiciário responder com meios céleres e eficazes de prestação jurisdicional, de modo a assegurar a imediata satisfação do direito do credor(1).
A decisão que impõe o pagamento de alimentos dispõe de carga eficacial condenatória, isto é, reconhece a existência de obrigação de pagar quantia certa. Outrossim, a sua execução, comporta dois meios executórios, a saber: a expropriação de bens, prevista nos arts. 732 e 735 do Código de Processo Civil, que fazem expressa remissão à via de execução por quantia certa contra devedor solvente; e, a outra possibilidade, pelo rito da coerção pessoal, disciplinado no art. 733 do referido diploma legal (2).
Todavia, com a entrada em vigor da lei nº. 11.232/2005 não mais existe processo de execução de título executivo judicial. Apenas os títulos executivos extrajudiciais dispõem de procedimento autônomo, de acordo com as alterações produzidas pela edição da lei nº. 11.382/2006. Para o cumprimento da sentença que reconheça obrigação de pagar quantia certa basta o requerimento do credor nos próprios autos do processo de conhecimento.
Sendo assim, em se tratando de título executivo judicial, a sistemática a ser adotada para cumprimento da decisão é a trazida pela lei nº. 11.232/2005.
E o fato da lei ter silenciado sobre a execução de alimentos não pode conduzir à idéia de que a falta de modificação dos arts. 732 e 735 do Código de Processo Civil impõe a manutenção do demorado processo de execução, porquanto viria a contrariar o próprio objetivo da lei, que é dar maior celeridade ao feito executivo. A interpretação do ordenamento jurídico no presente caso deve ser a teleológica, haja vista que a execução de alimentos, como já referido, exige maior presteza do judiciário, dada a importância e premência da verba alimentar (3).
Assim, em um processo lógico e conciliando a lei nº. 11.232/2005 com o ordenamento vigente, que exige do direito de família uma atenção especial à prestação alimentícia, tanto que existe procedimento especial para fixação de alimentos (4), com maior razão deve ser aplicado o art. 475-J e seguintes do Código de Processo Civil, inclusive com a aplicação da multa, que possui caráter coercitivo (5), para que o devedor cumpra voluntariamente a obrigação que lhe foi imposta (6).
Com efeito, a nova sistemática não traz prejuízos para o devedor, que dispõe de prazo para se defender, por meio de impugnação, prevista no art. 475-J, § 1º do Código de Processo Civil. Ademais, a opção pela execução expropriatória, com a incidência da multa ao invés do rito da prisão, é menos gravosa ao devedor, já que estará respondendo pela dívida com o seu patrimônio e não poderá sofrer coerção pessoal, indo ao encontro do disposto no art. 620 do Código de Processo Civil.
Portanto, o crédito alimentar está sob a égide da lei nº. 11.232/2005, cabendo ao credor optar pela cobrança sob o rito da coerção pessoal, ou mediante a imposição de multa, no momento em que houver o atraso de 15 dias no pagamento de qualquer prestação.
Nesse sentido, aliás, já se manifestou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no julgamento dos agravos de instrumento de nº. 70018323584 (7) e nº. 70019020379 (8).
Por outro lado, na execução que segue o procedimento do art. 733 do Código de Processo Civil não se incorpora a multa. Ainda que o art. 475-J diga que sobre o montante da condenação será acrescido multa de 10% na hipótese de não cumprimento no prazo de 15 dias, tal encargo não integra a obrigação alimentar, já que a dívida é exigida através do rito da coerção pessoal, sob pena de dupla sanção ao devedor[9].
Logo, de todo expendido conclui-se que pela natureza da dívida não é crível que a omissão legislativa em atualizar os dispositivos reguladores da execução de alimentos impeça o uso da forma simplificada e célere que a reforma introduzida pela lei nº. 11.232/2005 visou implementar.


 (1) MADALENO, Rolf Hanssem. Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 158.
 (2) Embora não haja preferência legal entre um e outro procedimento, a jurisprudência consolidou o entendimento de que a coerção pessoal só pode ser utilizada para cobrar as três últimas parcelas vencidas, conforme a súmula nº. 309 do Superior Tribunal de Justiça.
 (3) DIAS, Maria Berenice. Execução de Alimentos e as Reformas do CPC. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil - n. 46. mar-abr/2007. p. 67-75.
 (4) A ação de Alimentos segue o rito imposto pela Lei nº. 5.478/1968.
 (5) Fredie Didier ressalta que a multa tem dupla finalidade: "servir como contramotivo para a inadimplemento (coerção) e punir o inadimplemento (sanção). (DIDIER, Fredie. Curso de Processo Civil. Direito Probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação de sentença e coisa julgada. Vol. 2. Salvador: Podivm, 2007. p. 450) [grifo do autor].
 (6) CARVALHO. Newton Teixeira. A Nova Execução no Direito de Família. IBDFAM
 (7) Agravo de Instrumento. Execução de sentença. Incidência da multa de 10%. Devedor que alega não ter patrimônio. Irrelevância. Artigo 475-J do Código de Processo Civil. A Lei 11.232/2005, que acrescentou o art. 475-J ao Código de Processo Civil, aplica-se à execução de alimentos. O fato de o devedor não dispor de valor em pecúnia para saldar o débito, não justifica a retirada da multa de 10%, eis que nos termos do art. 475-J, do Código de Processo Civil, o simples inadimplemento determina a sua incidência. Negado seguimento ao recurso. (Agravo de Instrumento Nº 70018323584, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 07/03/2007).
 (8) Agravo de Instrumento. Execução de sentença. Artigo 475-J do Código de Processo Civil. Alimentos. A lei 11.232/2005, que acrescentou o art. 475-J ao Código de Processo Civil, aplica-se à execução de alimentos. Recurso provido. (Agravo de Instrumento Nº 70019020379, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 17/04/2007).
 (9)DIAS, Maria Berenice. Execução de Alimentos e as Reformas do CPC. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil - n. 46. mar-abr/2007. p. 67-75.
Mariana Helena Cassol é Bacharel em Direito e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela UNESUL.

Aspectos práticos da Lei nº11.441/07 com relação ao inventário e partilha

1. OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE A ESCRITURA PÚBLICA DE INVENTÁRIO E PARTILHA
As inovações trazidas pela Lei 11.441/07 possibilitam a realização de inventário e partilha amigável por escritura pública, quando todos os interessados sejam capazes e não haja testamento.
Não mais subsiste, portanto, a exclusividade do procedimento judicial, de que tratava o Código de Processo Civil em seus artigos 982 e seguintes.
A novidade, agora, é o inventário administrativo, porque realizado pelo tabelião de notas, mediante escritura pública, e não pela via judicial.
1.1. ALTERAÇÕES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Nos termos da comentada Lei n. 11.441, em vigor desde 5 de janeiro de 2007, foram alterados os artigos 982, 983 e 1.031 do Código de Processo Civil, com a finalidade de facilitar a realização do inventário por escritura, independente de homologação judicial.
Nesse sentido, a nova redação dada ao artigo 982 e seu parágrafo único do Código de Processo Civil:
Art. 982: Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.
Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
Também alterados os prazos de abertura e encerramento do inventário, com sua ampliação e possibilidade de serem prorrogados, ficando assim recomposto o artigo 983 do mesmo Código, revogado o seu parágrafo único:
Art. 983. O processo de inventário e partilha deve ser aberto dentro de 60 (sessenta) dias a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subseqüentes, podendo o juiz prorrogar tais prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
Ainda, a Lei 11.441/07 atualizou a redação do artigo 1.031 do Código de Processo Civil, para fazer substituir a referência ao artigo 1.773 do Código Civil de 1916 pelo artigo 2.013 do Código Civil de 2002, que versa sobre a partilha amigável por escritura:
Art. 1.031. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos do art. 2.015 da Lei n o 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, será homologada de plano pelo juiz, mediante a prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, com observância dos arts. 1.032 a 1.035 desta Lei.
1.2. PARTILHA OU ADJUDICAÇÃO
Partilha, como é curial, pressupõe a existência de dois ou mais interessados na herança.
Havendo herdeiro único, caberá tão somente a adjudicação do bem a esse interessado.
Será caso, então, de escritura pública de inventário e adjudicação, celebrada pelo herdeiro único.
1.3. DUALIDADE DE PROCEDIMENTOS: INVENTÁRIO JUDICIAL E INVENTÁRIO ADMINISTRATIVO
A modificação legislativa abarca tão somente uma espécie de inventário, que é o arrolamento sumário previsto no artigo 1.031 do Código de Processo Civil, nos casos em que o autor da herança não tenha deixado testamento e quando todos os interessados sejam capazes e concordes.
Nos demais casos, ou seja, havendo herdeiros menores, incapazes ou ausentes, e também quando houver testamento, o procedimento judicial continua obrigatório, com o rito estabelecido nos artigo 982 e seguintes do Código de Processo Civil.
Permanecem, também, as duas formas de inventário simplificado, que são o arrolamento sumário e o arrolamento comum, pelos ritos dos artigos 1.031 e 1.036 do mesmo Código.
Note-se que o arrolamento sumário exige procedimento judicial quando o autor da herança tenha deixado testamento. Mas ainda que não haja testamento, e mesmo que todas as partes concordem com os termos da partilha, poderá ser adotado o rito judicial, a critério ou por conveniência dos interessados.
Quanto ao arrolamento comum, reservado para os inventários de pequeno valor, sem partilha amigável, persiste o rito especial do artigo 1.036 do Código de Processo Civil.
1.4. CARÁTER OPCIONAL DO INVENTÁRIO ADMINISTRATIVO
A nova redação do artigo 982 do Código de Processo Civil, ao mencionar que, sendo os herdeiros capazes e concordes e não havendo testamento, "poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública", aponta o caráter facultativo desse procedimento.
Significa dizer que a escolha do procedimento, nesses casos, fica a critério das partes: via administrativa, com a celebração da escritura pública no Cartório de Notas, ou via judicial, pelo rito do arrolamento sumário.
Há situações que demandam o ingresso da ação de arrolamento em Juízo, não obstante a plena concordância das partes com a partilha amigável, especialmente quando haja necessidade de prévio levantamento de dinheiro ou de venda de bens deixados pelo autor da herança, para obtenção de fundos necessários ao recolhimento de impostos em atraso e atendimento aos encargos do processo. Em tais hipóteses, torna-se inviável a escritura pública em vista da falta de recursos para os pagamentos das despesas inerentes a esse procedimento cartorário.
1.5. HOMOLOGAÇÃO DA PARTILHA PELO JUIZ, SÓ NO PROCEDIMENTO JUDICIAL DE ARROLAMENTO SUMÁRIO
O art. 2º Lei 11.441, ao modificar o art. 1.031 do Código de Processo Civil diz que a partilha amigável será "homologada de plano pelo juiz"...
À primeira leitura, o texto deixa a impressão de que seria sempre exigível o procedimento judicial.
Mas assim não é. O art. 1.031 foi modificado apenas para constar referência ao art. 2.015 do atual Código Civil, em lugar do art. 1.773 do Código Civil revogado.
O procedimento judicial do fica reservado aos casos de arrolamento com testamento ou, mesmo não havendo testamento, sempre que as partes prefiram essa via, em face do caráter opcional da celebração de inventário por escritura pública.
Também é possível a partilha por escritura pública para ser levada ao processo de inventário comum. Trata-se da hipótese em que o processo se inicia de forma litigiosa e, ao final, termina por acordo das partes. Então celebra-se a partilha amigável e a escritura é trazida aos autos do inventário para homologação judicial. Mas ainda nessa hipótese, caso as partes prefiram, podem desistir do processo e simplesmente renovar o inventário e a partilha pela via administrativa, com a escritura pública valendo, então, como título auto-suficiente para o registro imobiliário.
Em suma, sempre que as partes maiores e capazes concordem com a partilha amigável, buscando a esfera administrativa, a escritura pública de partilha vale por si, como título hábil para o registro imobiliário, conforme dispõe o artigo 1º da mesma lei. Incabível, portanto, a homologação da partilha pelo juiz quando se trate de inventário por escritura pública.
1.6. ABERTURA DA SUCESSÃO E INVENTÁRIO
Marca-se a abertura da sucessão pelo óbito do autor da herança (art. 1.784 do CC). Não se confunde com a abertura do inventário, que será feita depois, nos prazos estabelecidos na lei.
A escritura de inventário e partilha pode abranger sucessões abertas a qualquer tempo.
Cumpre observar, no entanto, a capacidade sucessória das partes, que se regula pela lei vigente à data da abertura da sucessão.
Assim, caso o óbito tenha ocorrido até 10 de janeiro de 2003, será aplicada a ordem da vocação hereditária prevista no artigo 1.603 do Código Civil de 1916. A partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código Civil de 2002, deve ser observada a ordem da vocação hereditária prevista em seu artigo 1.829 (e, para os companheiros, no art. 1.790), com importante modificação relativa ao sistema de concorrência do cônjuge e do companheiro com descendentes e outros sucessores.
1.7. PRAZO PARA O INVENTÁRIO
Não são fatais os prazos de 60 dias para abertura e de 12 meses para encerramento do inventário (seja judicial ou seja administrativo).
O inventário pode ser realizado a qualquer tempo, mas com penalidades de ordem fiscal, uma vez que o atraso leva à aplicação de multas sobre o valor do imposto, além de correção e juros de mora. Cumpre observar as normas da legislação local a esse respeito.
1.8. DISTINÇÃO ENTRE MEAÇÃO E HERANÇA
O inventário serve tanto para atribuição dos direitos de meação ao cônjuge sobrevivente como para a partilha da herança, isto é, atribuição dos quinhões aos herdeiros.
A meação decorre do regime de bens adotado no casamento. Pode ou não existir, dependendo de serem ou não comunicáveis os bens deixados pelo falecido.
A herança consiste na parte dos bens deixada pelo autor da herança depois de apartada a meação do cônjuge sobrevivente.
Essa parte é que se atribui aos herdeiros.
Notar que o cônjuge sobrevivente pode acumular as posições de meeiro e de herdeiro, uma vez que receba determinados bens em razão da meação e outros pelo direito de herança.
Cabe lembrar, ainda, que o cônjuge concorre na herança com os descendentes, dependendo do regime de bens, conforme regulado no artigo 1.829 do Código Civil, e, na falta de descendentes, com os ascendentes do falecido, qualquer que seja o regime de bens.
1.9. EFEITOS DO INVENTÁRIO E PARTILHA POR ESCRITURA PÚBLICA
Além do efeito principal, que é valer como título para o registro imobiliário, a escritura de partilha amigável serve também para outros fins correlatos à transmissão dos bens.
Assim, havendo partilha de dinheiro, o simples traslado da escritura vale para autorizar o levantamento das importâncias inventariadas que se achem depositadas em instituições financeiras. No caso de transmissão da propriedade de veículos, a exibição da escritura bastará para instruir o pedido no órgão público competente (DETRAN). O mesmo se diga de providências decorrentes da partilha na Junta Comercial, no Registro Civial de Pessoas Jurídicas, em companhias telefônicas, etc..
 
1.10. COMPETÊNCIA FUNCIONAL DO TABELIÃO
A nova redação do artigo 982, parágrafo único, do Código de Processo Civil menciona que o "tabelião" lavrará a escritura.
Mas não se trata de ato privativo do titular do Tabelionato. Como em outras escrituras, admite-se a delegação da prática do ato por escrevente habilitado, embora sob a necessária orientação e integral responsabilidade do notário, conforme dispõe a Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, que regula as atividades notariais.
De outra parte, é livre a escolha do tabelião de notas pelas partes, desde que o ato seja praticado nos limites da área de sua atuação funcional (art. 8º da Lei n. 8.935/94). A Lei nº 11.441/07 nada determinou a esse respeito, de modo que não se aplicam à espécie as regras de competência do Código de Processo Civil, quanto ao foro do último domicílio do falecido.
Está aí mais uma vantagem da escritura de inventário e partilha, pela facilidade de celebração do ato quanto as partes residam em local distante daquele em que situado o antigo domicílio do autor da herança. Mas também haverá certo risco para os interesses de terceiros, especialmente credores, por não disporem de meios para uma pronta apuração de escrituras celebradas em cartórios de outras comarcas.
Bem por isso, recomenda-se a criação de um Registro Central de Inventários, para concentrar dados e informações dos atos notariais lavrados, prevenir duplicidade de escrituras e facilitar as buscas.
1.11. RESPONSABILIDADE DO TABELIÃO
Não obstante as escrituras de partilha amigável sejam celebradas por partes maiores e capazes, com a obrigatória assistência de advogado(s), o tabelião é responsável por eventuais desvios e atos que sejam praticados contra expressa disposição legal.
Sua atividade não é passiva ou meramente executiva do ato de partilha que pode lhe chegar por meio de minuta elaborada pelas partes ou pelo advogado que lhes preste assistência.
Ao contrário, cabe ao tabelião orientar as partes sobre os direitos de cada qual, em face dos bens havidos por transmissão "causa mortis" e, também, sobre os encargos fiscais, como a apresentação de certidões negativas sobre os bens e rendas do espólio e o recolhimento dos impostos, tanto o imposto de transmissão "causa mortis" (ITCMD) como o imposto de transmissão "intervivos" no caso de partilha desigual (ITBI ou ITCMD - doação).
A falta de pagamento dos tributos exigidos no inventário dos bens do autor da herança leva à responsabilidade solidária do tabelião, conforme dispõe a legislação específica (em São Paulo, sobre o ITCMD - Lei n. 10.705/00, com as alterações da Lei n. 10.992/01).
1 .12. NECESSÁRIA ASSISTÊNCIA DE ADVOGADO
A escritura pública de inventário e partilha somente pode ser lavrada com a presença de advogado com habilitação legal, comprovada por carteira da Ordem dos Advogados do Brasil. Pode ser um advogado comum para todas as partes ou advogados de cada uma delas.
A procuração pode ser apresentada pelo profissional, no ato da escritura, ou tomada por termo (apud acta).
Compete ao advogado, querendo, apresentar minuta da escritura, que será examinada e seguida pelo tabelião se estiver nos termos da lei e for confirmada pelas partes interessadas.
Sua participação tem que ser efetiva, dando assistência às partes, conferindo a escritura e assinando o instrumento juntamente com os interessados.
Não cabe ao tabelião indicar advogado às partes e, muito menos, ter no cartório um advogado de plantão. Cumpre aos interessados diligenciar a respeito e trazer o profissional de sua confiança. Caso solicitem ajuda, haverão de ser encaminhadas aos órgãos próprios, que são a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública.
1.13. BENS E DIREITOS QUE DISPENSAM INVENTÁRIO E PARTILHA
Certos bens e direitos dispensam a realização de inventário, seja judicial ou administrativo.
Assim, os levantamentos de certos valores deixados pelo falecido, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), saldos de salários, PIS-PASEP, devolução de tributos e depósitos bancários não excedentes a 500 antigas Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), não havendo outros bens sujeitos a inventário, são feitos sem maiores formalidades, nos termos do artigo 1.037 do Código Processo Civil e da Lei n. 6.858/80.
Tais bens não são atribuídos aos herdeiros e sim aos dependentes do falecido. Basta que o dependente, munido de comprovante da Previdência Social, apresente-se ao Banco depositário e ao ex-empregador para o levantamento do fundo ou dos créditos pendentes.
Também não comportam inventário os pagamentos de valores de seguro de vida e de previdência privada, que são devidos aos beneficiários do segurado (aqueles indicados na apólice ou os herdeiros legítimos).
Mas se houver bens de outra natureza, que exijam inventário, então caberá a escritura pública para formalização do ato. E se não houver dependentes, faz-se a partilha regular aos herdeiros do falecido.
 
2. FORMALIDADES DA ESCRITURA DE INVENTÁRIO E PARTILHA
Como se viu, a lei somente permite a celebração da escritura da inventário e partilha se:
a) as partes forem todas maiores e capazes,
b) houver acordo de partilha,
c) estiver presente um advogado para assistência às partes.
d) não houver testamento.
Em tal situação e atendidos os encargos fiscais, será lavrada a escritura pelo tabelião, valendo como título para o registro imobiliário e outros efeitos correspondentes à transmissão dos bens, sem necessidade de homologação ou ordem judicial.
2.1. PARTES NO INVENTÁRIO
As partes maiores e capazes (incluindo-se os emancipados) devem comparecer a cartório, por si ou por procurador com poderes especiais, assistidas por advogado, apresentando seus documentos pessoais para qualificação e os documentos relativos aos bens do espólio.
Consideram-se partes interessadas:
a) o cônjuge sobrevivente, b) o companheiro sobrevivente, c) os herdeiros legítimos, d) eventuais cessionários, e) eventuais credores.
O cônjuge do herdeiro, quando não casado no regime da comunhão, comparece como anuente, salvo se o regime for o da absoluta separação de bens (porque desnecessário seu consentimento - art. 1.647 do CC). Se tiver direito à meação, o cônjuge comparece como parte na escritura.
Se o falecido mantinha união estável, o companheiro sobrevivente será parte interessada, seja em razão da meação (art. 1.725 do CC), ou seja por participar da herança sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência, juntamente com os descendentes e outros parentes sucessíveis (art. 1.790 do CC).
Pressupõe-se, naturalmente, o consenso de todos os interessados no reconhecimento dos direitos do companheiro. Subsistindo litígio, não será caso de inventário por escritura pública, mas sim da via judicial própria.
Havendo um só herdeiro com direito à totalidade da herança, não haverá partilha, mas sim uma escritura de inventário e adjudicação dos bens a esse interessado.
 
2.2. CREDORES DO ESPÓLIO
O credor do espólio poderá haver diretamente os seus direitos, mediante acordo com os herdeiros, ou constar da escritura pública para oportuno recebimento do crédito reconhecido pelos demais interessados.
Cabe aos herdeiros indicar não só o ativo mas também o passivo do espólio, neste caso discriminando as dívidas e os respectivos credores bem como a forma de seu pagamento.
De qualquer forma, ainda que não sejam indicados, os credores terão sempre ressalvados os seus direitos, podendo agir por ação própria contra os herdeiros, na medida dos quinhões da herança atribuídos na partilha.
 
2.3. CESSIONÁRIO
Efetua-se também por escritura pública a cessão de direitos hereditários, na forma do artigo 1.793 do Código Civil.
O cessionário comparece em substituição ao herdeiro cedente, assumindo a posição de parte no processo de inventário.
 
2.4. RENÚNCIA DA HERANÇA
Ocorrendo renúncia da herança, por escritura pública autônoma ou nos próprios termos da escritura de inventário, os direitos transmitem-se ao monte, atribuindo-se, pois, aos demais herdeiros situados na mesma classe e grau ou, se todos renunciarem, aos herdeiros subseqüentes, conforme a ordem da vocação hereditária.
Havendo credores do herdeiro renunciante, poderão habilitar-se no lugar dele para o recebimento da respectiva quota na herança.
A verdadeira renúncia é a pura e simples, abdicativa. Mas pode haver renúncia imprópria, quando feita em favor de alguém, importando em cessão de direitos hereditários. Nesse caso, incidirá o imposto causa-mortis e, também, o inter-vivos pela cessão da herança a terceiro.
 
2.5. PROCURADORES DAS PARTES
As partes podem ser representadas na escritura por procuradores com poderes especiais para a prática do ato.
Como se trata de ato público, a procuração deve se revestir da mesma forma, ou seja, por escritura pública (art. 657 do CC).
 
2.6. NOMEAÇÃO DE INVENTARIANTE.
Nos casos comuns de partilha não há necessidade de nomeação de inventariante pelas partes, já que o ato se exaure com a escritura de transmissão dos bens do autor da herança.
Mas se houver necessidade da indicação de um dos herdeiros para cumprir certos atos ou cumprir obrigações em nome do espólio, pode ocorrer a nomeação de um interessado (o cônjuge sobrevivo ou algum herdeiro) para representar os demais, na posição de inventariante. Tal se dá em situações que exijam atividades externas à escritura, como o levantamento de depósitos bancários, recebimento ou outorga de escritura em nome do espólio, transferência de bens em órgãos públicos etc..
 
2.7. ADMINISTRADOR PROVISÓRIO
As providências que antecedem à outorga da escritura devem ser tomadas pelo administrador provisório, que geralmente é o cônjuge viúvo ou o herdeiro que se achar na posse e administração dos bens (artigos 1.797 do CC e 985 do CPC).
Se necessária autorização judicial para a prática de determinado ato, caberá aos interessados requerer nessa via o atendimento de suas pretensões, por medidas cautelares ou pedidos de alvará.
 
2.8. DOCUMENTOS DAS PARTES
A qualificação completa do autor da herança (de cujus) e das partes interessadas deve ser instruída com os correspondentes documentos:
a) Certidão de óbito do autor da herança,
b) RG e CPF do autor da herança e das partes,
c) Certidões comprobatórias do vínculo de casamento e do vínculo de parentesco dos herdeiros (certidão de casamento e certidões de nascimento),
d) Certidão de óbito de eventual herdeiro pré-morto, para habilitação de seus representantes ou de outros sucessores,
e) Certidão de casamento dos herdeiros, se for o caso,
f) Pacto antenupcial, se houver.
g) certidão negativa da existência de testamento (a ser obtida do Colégio Notarial - Central de Testamentos).
 
2.9. BENS - DESCRIÇÃO, VALORES E DOCUMENTOS
Depois da qualificação do autor da herança e das partes (cônjuge, herdeiros, cessionários e outros eventuais interessados), a escritura deve conter a descrição dos bens sujeitos a inventário.
Os bens da herança constituem o patrimônio deixado pelo falecido, na sua totalidade, abrangendo a meação do cônjuge sobrevivente ou do companheiro e a herança propriamente dita, que será transmitida aos herdeiros legítimos.
Devem ser descritos os bens imóveis e móveis, direitos e obrigações do autor da herança, com seus eventuais ônus e encargos.
A descrição deve ser fiel à matrícula do imóvel, a ser expressamente mencionada (art. 2º da Lei nº 7.433/85), para evitar futuros problemas de registro. Se houver mudança, há que ser regularizada por atos próprios, como a retificação de área, a averbação de rua e número do prédio, a averbação de construção, etc.. No caso de imóvel rural, verificar se o descritivo atende às normas do levantamento topográfico por geo-refenciamento (Lei n. 6015/73, com alterações ditadas pela Lei n. 10.267/01; normas da ABNT-NBR n. 13.133/94).
Imóvel urbano deve ser acompanhado do lançamento do IPTU; imóvel rural, do certificado de cadastro do INCRA. Num e noutro caso, indispensável a juntada de certidões negativas.
A descrição de bem móvel deve ser instruída com prova da aquisição, se houver (assim, para veículo, o certificado de propriedade).
Não só a propriedade, mas igualmente direitos por compromisso de compra e venda e mesmo os direitos de posse são suscetíveis de inventário e partilha, com a precisa indicação de sua natureza, origem e os documentos comprobatórios.
Os semoventes serão descritos pelo número, espécies, marcas e sinais distintivos. Outros bens, como dinheiro, depósitos, jóias, objetos de valor, mobiliário etc., serão indicados com especificação da qualidade,peso e importância.
Cotas societárias, ações e títulos também devem ter as devidas especificações e atribuição de valores, com os documentos comprobatórios: contrato social, certificados ou cautelas, levantamento contábil (balanço), cotação em bolsa e outros meios adequados.
 
2.10. BENS SITUADOS NO ESTRANGEIRO
A competência para escrituras de inventário e partilha no Brasil cinge-se apenas os bens situados no território nacional. Essa a regra para o inventário judicial (arts. 89 e 96 do CPC), que se aplica igualmente à escritura pública.
Os bens situados no estrangeiro não podem ser aqui partilhados. Devem ser objeto de procedimentos autônomos, no país onde se situem.
Ressalva-se a possibilidade de convenção internacional que permita a aceitação de escritura pública de inventário e partilha em bens situados nos paises convenentes.
 
2.11. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITOS FISCAIS
De rigor, como anotado, a apresentação de certidões negativas de débitos relativas aos bens do espólio (IPTU para os imóveis urbanos, ITR para os imóveis rurais, CND para as empresas) e às suas rendas (IR - Receita Federal).
Sem as certidões não será possível lavrar-se escritura de inventário e partilha, sob pena de responsabilizar-se, o tabelião, pelos débitos pendentes, e de inviabilizar o registro imobiliário.
 
2.12. IMPOSTOS DE TRANSMISSÃO
O recolhimento do imposto de transmissão causa mortis deve ser feito no momento que antecede à escritura (arts. 1.026 do CPC e 192 do CTN).
A alíquota e a base de cálculo obedecem à legislação de cada Estado. Em São Paulo, observar a Lei 10.705/00 (com as modificações da Lei 10.992/01) e a Portaria da Secretaria da Fazenda (CAT n. 5). O recolhimento faz-se por guia eletrônica (acesso pelo site ), sujeita a verificação no Posto Fiscal competente.
Se houver partilha em valores desiguais, haverá de ser recolhido também o imposto inter vivos: o ITBI, de competência municipal (conforme a legislação local), referente à transmissão onerosa de bens imóveis, ou o ITCMD - doação, de competência estadual, referente à transmissão gratuita de quaisquer bens.
 
2.12. SOBREPARTILHA
Admite-se escritura pública com partilha parcial, quando não seja possível partilhar todos os bens deixados pelo autor da herança.
Os bens deixados para sobrepartilha são aqueles que dependem de decisão por serem litigiosos, os sonegados, os que se achem em lugar distante ou de difícil acesso e os que se apurem posteriormente.
Faz-se a sobrepartilha pela mesma forma como realizada a partilha, ou seja, por outra escritura pública, desde que todos os herdeiros sejam capazes e concordes. Caso subsista litígio, a sobrepartilha será objeto de ação judicial, por inventário comum.
 
2.13. ESCRITURA DE RETIFICAÇÃO DA PARTILHA
Verificada a existência de erros na partilha, pode ser feita a retificação por meio de escritura pública, com as mesmas formalidades do ato original, desde que compareçam todos os interessados. São hipóteses comuns as retificações na descrição dos bens e na menção a documentos das partes (como RG, CPF).
 
3. CONCLUSÕES DE GRUPO DE ESTUDOS DA CGJ-SP
As considerações acima expendidas constam, em grande parte, de conclusões de Grupo de Estudos instituído pela Portaria CG nº 01/2007 (DOE de 11.01.2007), da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, formada por magistrados, advogados e representantes dos notários.
A Corregedoria considerou não oportuna, por ora, a edição de provimento referente ao novo serviço extrajudicial emergente da Lei Federal nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, mas determinou a publicação das conclusões apresentadas, para divulgação do resultado dos trabalhos do Grupo de Estudos e para, provisoriamente, servir de orientação geral (salvo a do subitem 5.5 das conclusões, que se refere à separação por procuração).
Para melhor exame das conclusões, que abrangem também as escrituras de separação consensual e de divórcio consensual sem filhos incapazes, ver o texto publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, caderno do Poder Judiciário, edição de 8 de fevereiro de 2007, bem como nos sites www.tj.sp.gov.br e www.colegionotarialsp.org.br
 
3.1. CRIAÇÃO DE CENTRAL DE INVENTÁRIOS
Foi determinada pela Corregedoria da Justiça a formação de expediente próprio para medidas tendentes à implantação de um Registro Central de Inventários e de outro de Separações e Divórcios, nos moldes do Registro Central de Testamentos, já existente.
Será de grande utilidade para conhecimento das escrituras pelos interessados e eventuais credores do espólio, em vista da possibilidade de serem os atos realizados em qualquer tabelionato, especialmente se houver, também, uma central nacional para registro das escrituras celebradas em qualquer parte do país.
 
3.2. EMOLUMENTOS DA ESCRITURA - NOVA LEI DE CUSTAS
Cabe aos Estados fixar por lei os emolumentos cartorários para a celebração de escrituras públicas de inventário e partilha.
Enquanto não houver previsão legal, vale a determinação da Corregedoria para que se apliquem as tabelas em anexo à Lei Estadual nº 11.331, de 26 de dezembro de 2002, orientando-se a cobrança dos emolumentos pela classificação nas atuais categorias de "escritura com valor declarado", considerado o valor total do acervo, mas excluído o valor da meação.
Atendendo a ponderações do Grupo de Estudos e atenta ao § 3º do artigo 29 da Lei Estadual nº 11.331/02, a Corregedoria mandou oficiar à Secretária da Justiça e da Defesa da Cidadania, encaminhando-se cópia das manifestações e conclusões mencionadas, para acompanhamento e aprimoramento da legislação relativa aos emolumentos, especialmente com vista aos estudos para eventual projeto de lei de disciplina específica dos emolumentos referentes aos novos atos notariais.
 
3.3. GRATUIDADE
Ao parecer da Corregedoria, a gratuidade prevista na Lei n° 11.441/07, também compreende as escrituras de inventário e partilha. É de ver, contudo, que a nova redação data ao § 3º do artigo 1.124-A do Código de Processo Civil dirige-se às escrituras públicas de separação e divórcio consensuais, sem previsão específica para as escrituras de inventário.
 
4. MODELO DE ESCRITURA DE INVENTÁRIO E PARTILHA
Para elaboração da escritura de inventário e partilha amigável, observar os dados essenciais constantes dos modelos de arrolamento sumário em nosso livro Inventários e Partilhas, Leud:SP, 20ª. ed. (cap. XVII, págs. 530 a 535), com as necessárias adaptações, para constar a presença do tabelião e a assistência de advogado, consignar os recolhimentos fiscais e as demais exigências do ato notarial.
Exemplo de minuta elaborada pelo Colégio Notarial de São Paulo, comentários e orientações práticas sobre a aplicação da Lei n. 11.441/07 podem ser vistos no site www.colegionotarialsp.org.br
Consultar, também, anotações doutrinárias publicadas no site www.ibdfam.com.br
 
5. CONCLUSÃO
Bem se observa o intuito simplificador da nova legislação sobre inventário e partilha amigável. A possibilidade da via administrativa facilita a elaboração do ato e, de outra parte, contribui para aliviar a pletora dos serviços judiciários.
Resta solucionar os pontos controvertidos da sistemática ora implantada, de modo a viabilizar sua efetiva aplicação. Nesse aspecto, além das orientações das corregedorias da justiça estaduais, aguarda-se pronunciamento do Conselho Nacional da Justiça, que recentemente reuniu os dirigentes do Poder Judiciário para estudos, debates e preparo de resolução sobre os mecanismos práticos de elaboração dos procedimentos notariais em inventário e partilha, bem como nas separações e divórcios consensuais.

A família afetiva — O afeto como formador de família

  1. Introdução.
Inicialmente traremos considerações doutrinárias e jurisprudenciais para ao final expormos nosso entendimento sobre o aspecto afetivo atinente ao Direito de Família.
Não há como deixar de discorrer algumas linhas sobre a família. De certo que não iremos tecer todo o traço histórico da entidade familiar, nos restringindo apenas ao período pós-independência de nosso país.
Para que não haja estranheza por parte dos leitores, cumpre-nos esclarecer que ao tratarmos da Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, não utilizaremos a expressão "Código Civil novo", por entendermos não se tratar de um novo código, mas, sim, de uma atualização da lei civil de nosso país, tendo como novidade apenas o paradigma que o concebeu: refletir uma alteração profunda dos elementos trazidos pela formulação original de Clovis Bevilaqua.
2. Bosquejo histórico.
Ficamos por muito tempo sujeitos às regras de Portugal (nossa pátria descobridora), regras essas que não se limitavam ao âmbito jurídico, mas também ao religioso e social.
A pátria portuguesa sempre teve uma forte ligação com o catolicismo (religião esta que é a oficial naquela república), iniciada com Santa Inquisição (séc. XIII) e aperfeiçoada com o tempo, vindo a Igreja, posteriormente, a exercer papel de forte influência na constituição do Estado e na vida de seus cidadãos. Foi o período em que o Estado era chamado de Eclesiático.
Descobertos que fomos no ano de 1500, todos os costumes e tradições portuguesas passaram a fazer parte do cotidiano brasileiro, dentre eles as leis e as imposições sacras advindas daquele Estado-Eclesiático. Ressalte-se que, como já frisamos no capítulo 1 (na origem e história do Direito das Sucessões), a seqüência das Ordenações do Reino em nosso país foram: I — Ordenações Affonsinas (ano 1446); II — Ordenações Manuelinas (1512); e III — Ordenações Filipinas (1603).
Quando da proclamação da independência brasileira, no ano de 1822, estavam vigentes, em nosso país, as Ordenações Filipinas.
Estivemos por muito tempo acobertados por uma realidade européia, que veio a traçar pontos diversos em nossa história: os senhores de engenho, a prática da escravatura, a vida em verdadeiros feudos e um rigor social/moral nas famílias.
Levaram-se anos para que Teixeira de Freitas aceitasse a incumbência de consolidar as leis civis que eram aplicadas em nosso país, bem como apresentar um projeto de Código Civil para o então Reino do Brasil.
Esse jurista teve seu contrato cancelado após apresentar uma prévia de seu projeto, o qual era extremamente avançado para sua época, trazendo em seu bojo termos como função social da propriedade e da família.
O contexto social daquela época não permitia que algumas situações por nós experimentadas hoje viessem a ser implementadas. Não há como imaginar famílias se separando, mães solteiras, uniões homo-afetivas e igualdade entre os cônjuges. Tal fato pode ser mais bem observado de maneira mais detalhada na brilhante obra de Orlando Gomes "Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro".
Mesmo com a vigência do Código Civil de 1916, cujo projeto foi elaborado por Clovis Bevilaqua, não houve nenhuma mudança substancial na realidade da família brasileira, sendo esta um núcleo onde o homem exercia o poder absoluto do controle e comando da casa, devendo a mulher e filhos prestar-lhe obediência e imensurável respeito.
Claro que com o passar dos anos a sociedade veio a sofrer transformações em várias esferas, não ficando a família alheia a isso. A conquista das mulheres ao direito ao voto e direito ao trabalho foram os grandes marcos de uma sociedade que sempre foi machista e feudalista.
O divisor de águas se deu com o início da vigência do texto constitucional de 05 de outubro de 1988. A igualdade entre os cônjuges, liberdades e garantias à mulher, até então inimagináveis, vieram a ser elevadas à condição de cláusulas pétreas. Daí o dizer de alguns doutrinadores: o Direito de Família é a parte do Direito Civil (direito privado) mais público em nosso contexto jurídico.
A proteção à família e suas formas de constituição e reconhecimento passaram a ter na CF/88 linhas gerais, devendo o texto civil se adequar a tais modificações. A família oriunda do casamento e da união estável (que passou a ser reconhecida como formadora de núcleo familiar) teve tratativa constitucional.
Jamais perderemos de vista a diferenciação própria que o constituinte procurou dar a cada espécie familiar. Contudo, é inegável que todas as espécies de família são faces de uma mesma realidade. A mudança reclamada pela sociedade não ocorreu de maneira separada para cada uma delas. Ao contrário, as diversas maneiras pelas quais homens, mulheres e filhos desenvolviam seus laços afetivos faziam parte de uma mesma realidade, cercada por características comuns que não suportavam mais a estrutura patriarcal enraizada nos setores conservadores de nossa sociedade e prevista numa legislação que estava em completa desarmonia com a realidade nacional. (OLIVEIRA, 2002, p. 229).
3. A importância do afeto como elemento nas famílias.
Assim como as famílias mudaram, os núcleos familiares também sofreram alterações em sua estrutura e composição. A família composta por diversos membros começou a perder força ao longo dos anos, bem como aquela formada apenas por filhos legítimos, seja por imposição legal, seja porque os núcleos familiares passaram a valorizar um fator imprescindível para sua formação: o amor, o afeto!
Não há como negar que a nova tendência da família moderna é a sua composição baseada na afetividade. Sabemos que legislador não tem como criar ou impor a afetividade como regra erga omnes, pois esta surge pela convivência entre pessoas e reciprocidade de sentimentos.
Segundo OLIVEIRA (2002, p. 233), "a afetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros — a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social — é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores características da família atual."
Daí se entender que com essa situação estamos diante do que BORDA (2002, p. 22) chamou de estado de família, que se resume na posição que uma pessoa ocupa dentro de um núcleo familiar.
Este estado de família mencionado pelo civilista argentino é, para nós, a família lastreada na cooperação, respeito, cuidado, amizade, carinho, afinidade, atenção recíproca entre todos os seus membros.
Inegável é que o afeto encontra-se presente nas relações familiares tradicionais, sendo caracterizadas no tratamento/relação mútuo entre os cônjuges e destes para com seus filhos, que se vinculam não só pelo sangue, mas por amor e carinho.
Nesse contexto, vale citar a denominada "adoção à brasileira, aquela em que a paternidade não prescinde de vínculo biológico, encontrando guarida no art. 1.593 do Código Civil, quando dispõe que o parentesco pode resultar de "outra origem".
Mas para que reste configurada esta formação familiar, imprescindível se faz que alguns pontos sejam elucidados, dentre os quais: a) o estado de filiação; b) a posse do estado de filho; e c) a valoração do afeto como valor jurídico e formador de núcleo familiar, os quais passaram a ser analisados em seguida.
a) estado de filiação:
Três são os tipos de parentesco existentes no atual Código Civil: consangüinidade, civil e afinidade. Entretanto, com o advento da Carta Constitucional de 1988, preconizou-se em seu art. 227 que este estado de filiação caracterizado pelo "filho" e aquele que assumiu todos os deveres/obrigações oriundos da paternidade, é o mais puro elemento exigido para a configuração dessas "relações de parentesco".
Para nós, seria a proteção criada pela doutrina e que passa a ter força nos Fóruns e Tribunais do brocado popular "pai é aquele que cria".
Esta foi, sem dúvida, uma tentativa de proteger um direito subjetivo desse filho, sendo esta uma luta por um direito subjetivo que se dá quando há certa situação.
É provocada quando o direito é lesado ou usurpado. Não estando direito algum ao abrigo deste perigo, nem o dos indivíduos, nem o dos povos, — porque o interesse de qualquer em o defender choca-se sempre com o interesse de outro em o desprezar — resulta que esta luta se apresente em todas as esferas do direito, tanto nas baixas regiões do direito privado como também nas eminências do direito público e do direito internacional. (VON IHERING, 2006, p. 12).
Ressalta-se que o estado de filiação, aqui referido, é o estado de filiação sócio-afetiva.
Negar que atualmente as relações baseadas no afeto e carinho são menos importantes do que as consangüíneas é um erro. A filiação biológica não está mais em pé de superioridade, uma vez que a criação do filho afetivo surge por circunstâncias alheias à imposição legal/natural que a paternidade impõe.
Trata-se do vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filhos e pais — ou entre o filho e apenas um deles —, tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles: 'melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo'. (GAMA, 2003, pp. 482-483).
Os precedentes históricos para a configuração desta filiação nos trazem o brocado "pater is est quem nuptiae demonstrant", oriunda do direito romano, onde o pai poderia aceitar ou repudiar o filho, configurando, desta feita, toda a situação de poder exercida pelo pai sobre a família.
Esse estado de filiação possui caracteres de cunho interno e externo. O primeiro se dá com os traços de indivisibilidade, indisponibilidade (pois diz respeito à personalidade) e imprescritibilidade (não se perde pelo não exercício), ao passo que o cunho externo se dá nos moldes de pessoalidade, generalidade e revestido de ordem pública.
Para QUEIROZ (2001, p. 34), "o estado é uno e indivisível, pelo fato de uma mesma pessoa não poder adquirir, ao mesmo tempo, vários status de uma mesma categoria. Por exemplo, não é possível ser solteiro e casado ao mesmo tempo."
Comungamos do entendimento de que o estado de filiação é uma ficção/criação jurídica, a qual tem o escopo de proteger o núcleo familiar, na medida que presume ser filho aquele que assim se mostra para a sociedade, ainda que não possua laço de sangue com seu "pai".
(...) o status, em primeiro lugar, não é considerado como a posição do indivíduo no agregado, antes como uma conseqüência do fato de que o indivíduo pertence ao grupo, e, em segundo lugar, os estados pessoais não são mais somente dois (civitatis e familiae), mas podem ser muitos e de variadas importâncias, 'de acordo com o alcance das relações jurídicas que a eles se relacionam'. (PERLINGIERI, 1997, p. 133).
Em recente julgado, assim se manifestou o STJ:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. PECULIARIDADES. A "adoção à brasileira", inserida no contexto de filiação sócioafetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. - O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. - O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. - Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. - A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. - Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar "adotivo" e usufruído de uma relação sócio-afetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. - Nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. Recurso Especial provido. (STJ; REsp 833.712; Proc. 2006/0070609-4; RS; Terceira Turma; Relª Min. Fátima Nancy Andrighi; Julg. 17/05/2007; DJU 04/06/2007; Pág. 347).
No entender de QUEIROZ (2001, p. 40), "o status de filho é um direito garantido à pessoa, porquanto a ordem jurídica vale-se de presunções legais, reconhecimentos voluntários ou até mesmo imposições através de sentenças judiciais, com o fito de fornecer uma identidade familiar àquele que não a detém de modo integral."
b) posse do estado de filho:
Se tomarmos base o conceito genérico de posse, encontraremos na doutrina e nos pronunciamentos dos tribunais, que esta é a exteriorização de um domínio (propriedade).
Claro está que não pode esse conceito de posse ser restrito apenas ao Direito das Coisas, para determinar quem é ou não possuidor de determinada coisa/bem, devendo, também, ser estendido a outros ramos do Direito.
No atual contexto da família, influenciada diretamente pelos preceitos constitucionais, novos conceitos se insurgiram (filiação sócio-afetiva/posse do estado de filho), os quais refletem, tão somente, as novas tendências no que diz respeito às relações de parentesco.
Sempre houve em nosso direito certa animosidade entre a paternidade/filiação biológica e a paternidade/filiação sócio-afetiva, tendo a primeira maior favorecimento; entretanto, nos últimos anos a segunda modalidade passou a ser objeto de estudo e atenção por parte dos doutrinadores e dos tribunais.
Se nos restringirmos apenas à paternidade/filiação biológica, poderemos vislumbrar que o filho possui uma condição de titularidade em relação a seus pais e estes à prole, ou seja, a sociedade vê aquele como filho destes.
O afeto exerce no atual contexto brasileiro um papel muito importante, delineando as relações familiares e os novos paradigmas da filiação. Desta feita, temos que a posse do estado de filho é um requisito essencial à caracterização da paternidade/filiação sócio-afetiva, traduzida na aparência/demonstração de um estado de filho, chamada, portanto, de estado de filho de afeto.
Essa noção de posse de estado não é um conceito novo no mundo jurídico, seu surgimento nos remonta ao direito romano, onde existiam o status civitatis, o status libertatis e o status familiae, em que este último dizia respeito à condição/atribuição que alguém possuía dentro de uma família.
De certo que a noção de estado de família e, conseqüentemente, a de filho e de pai/mãe, veio se aperfeiçoando com o passar dos séculos.
Atualmente, é o afeto que traça e cria os laços familiares, sendo este semeado e acalentado com o dia-a-dia.
A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quem em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade. (FACHIN, 2003, p. 25).
Essa idéia de posse de estado de filho vem crescendo muito no mundo acadêmico e também nos tribunais, revelando que a paternidade/filiação não se restringe ao fator biológico ou à presunção legal, mas, também, abrange o convívio diário e os elementos que surgem desse convívio.
A posse do estado de filho se configura sempre que alguém age como se fosse o filho e outrem como se fosse o pai, pouco importando a existência de laço biológico entre eles. É a confirmação do parentesco/filiação sócio-afetiva, pois não há nada mais significativo do que ser tratado como filho no seio do núcleo familiar e ser reconhecido como tal pela sociedade, o mesmo acontecendo com aquele que exerce a função de pai.
A posse de estado de filho, nada mais é, do que a prática de reiterados atos dos núcleos familiares, diante de uma íntima e longa relação de afeto, cuidado, preocupação e outros sentimentos que surgem com o carinho.
Deixar essas situações (paternidade/filiação sócio-afetiva) sem impor certas condições pode fazer com que sua finalidade se perca. Somos do entendimento que os elementos identificadores da família se estendem ao filho afetivo, a saber: i) apelido da família; ii) trato (sendo no núcleo familiar ou não); e iii) fama.
Diz LUMIA (2003, p. 99) que "(...) o papel do direito como estrutura da ação social é o de regular as relações intrasubjetivas. (...). Relações jurídicas são somente as relações intrasubjetivas (ou seja, as relações que se travam entre dois ou mais sujeitos) regulados por normas pertencentes ao ordenamento jurídico."
Ora, se o papel do direito é regular relações pertencentes ao ordenamento jurídico, dúvidas não pairam, portanto, no que diz respeito à paternidade/filiação sócio-afetiva, vez que o atual texto de Código Civil traz no bojo de seu art. 1.593 a possibilidade de se aceitar esta realidade.
Talvez a redação do mencionado art. não seja a mais adequada, haja vista que a expressão "outra origem" não reflete esta idéia de maneira acintosa. Cremos que poderia haver uma alteração no texto deste art., criando um parágrafo único neste art. Para nós, data vênia, poderia ser:
Art. 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade.
Parágrafo único: As relações sócio-afetivas, quando devidamente comprovadas, geram vínculos de parentesco.
Dúvidas não pairam sobre o estado de filiação, que é inerente ao ser humano e de cunho afetivo, nascendo no seio da família, ainda que seja pelo laço de sangue. Entretanto, a filiação biológica não exerce mais uma prevalência sobre a filiação afetiva, também configurada pela adoção, inseminação artificial e, claro, a posse do estado de filho.
Essa situação já é uma realidade para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como depreendemos de recentes julgados:
FILHO DE CRIAÇÃO. ADOÇÃO. SOCIOAFETIVIDADE. No que tange à filiação, para que uma situação de fato seja considerada como realidade social (socioafetividade), é necessário que esteja efetivamente consolidada. A posse do estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de estado, revelando quem efetivamente são os pais. A apelada fez questão de excluir o apelante de sua herança. A condição de "filho de criação" não gera qualquer efeito patrimonial, nem viabilidade de reconhecimento de adoção de fato. APELO DESPROVIDO. (TJRS; AC 70007016710; Bagé; Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Rui Portanova; Julg. 13/11/2003)
***
ALIMENTOS DEVIDOS A FILHO MAIOR. POSSIBILIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO DE NECESSIDADE QUE, ASSIM, DEVE SER COMPROVADA, JUNTAMENTE COM A POSSIBILIDADE DOS PAIS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE PERMITE AO FILHO, MESMO MAIOR E CAPAZ, BUSCAR PENSIONAMENTO ALIMENTAR DE SEUS PAIS COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 1. 695 DO CÓDIGO CIVIL, 229 E 1º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POSSIBILIDADE JURÍDICA DE CARACTERIZAR OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. O INDEFERIMENTO DA INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO CARACTERIZA VEDAÇÃO DE ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO O QUE NÃO É ADMITIDO PELA CONSTITUÇÃO FEDERAL. Os princípios da afetividade e da solidariedade encontram respaldo constitucional e ético e devem permear a conduta e as decisões da magistratura moderna e atenta à realidade do mundo atual. (TJRJ; AC 2006.001.51839; Décima Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Conv. Mauro Nicolau Junior; Julg. 30/01/2007).
Nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal houve também uma importante elucidação da matéria. Na I Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado nº. 103, o qual possui a seguinte redação:
103 — Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
No mesmo evento, foi aprovado também o texto do Enunciado nº. 108, estabelecendo que:
108 — Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva.
Nesse contexto, o Enunciado mais importante foi aquele aprovado sob o nº. 256, da III Jornada de Direito Civil, tendo o seguinte texto:
256 — Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.
O fundamento basilar da posse do estado de filho nasce com a convivência das relações entre pais e filho, ou seja, o afeto que vem a se impor para configurar o exercício das funções e obrigações oriundas da paternidade.
Do título constitutivo do status distingui-se a posse de estado que é, segundo as hipóteses, elemento sanante dos defeitos de forma de título de estado e prova legal do fato do qual depende o nascimento do estado pessoal civil: assim, a filiação pode ser provada com a posse continuada deduzida de uma série de fatos, tipicamente indicados pela lei; (...). (PERLINGIERI, 1997, p. 137).
Essa posse do estado de filho pode ser tida, portanto, como um ponto de suplementação no nosso sistema, partindo-se da presunção de paternidade/filiação, se aplicando através do brocado pater is est (...), haja vista que a exacerbada proteção às famílias oriundas do matrimônio deixa de lado situações fáticas que são de grande importância no atual contexto do Direito de Família brasileiro.
A nova realidade da família brasileira, surgida com a CF/88, trouxe ao núcleo familiar determinadas funções, como a de possibilitar aos seus membros uma vida com dignidade, com a criação de seus próprios dogmas, sua moral, sua ética, sua consciência política e religiosa, em respeito à ordem pública e aos ditames legais.
O Direito de Família retrata um imenso universo de batalhas, seja para dissolver os núcleos familiares, seja para consolidar e constituir mecanismos a fim de atender as expectativas sociais e dos indivíduos, respeitando-se os mais profundos valores da dignidade da pessoa humana.
Não vemos com maus olhos a "função social da família", haja vista que esta é considerada célula-mater da sociedade, devendo atingir o fim que não prescinde de expressa cominação legal.
Se realmente o Direito é sempre um fenômeno social e intrínseco ao âmago da ordem social, como leciona Ascensão (2005, p. 56), porque então esperar a normatização da função social da família?
O texto do Código Civil de 2002 já abre uma lacuna para a caracterização dessa posse de estado de filho, retratando a função social do Direito de Família, em especial do núcleo familiar. Seria violação clara à dignidade da pessoa humana qualquer vedação ao reconhecimento dessa paternidade/filiação sócio-afetiva.
A Carta Constitucional de 1988 trouxe um novo tratamento jurídico às relações de família, buscando aplicar suas regras no centro fundamental do Direito de Família (a própria família), com o escopo de protegê-la, visando seu fim social com decência, dignidade e amor.
c) valoração do afeto como valor jurídico e formador de núcleo familiar:
A atual tendência do Direito de Família é a de que buscar e zelar pela alegria, amor e respeito mútuos no ambiente familiar.
A partir disso, parte-se da seguinte premissa: deixar de reconhecer paternidade/filiação fundada no amor, no afeto, no carinho, na preocupação, no querer bem e na demonstração mais simples e bela que um ser humano pode ter por seu semelhante, é justo? Seria razoável? Seria atender aos ditames constitucionais de "bem-estar", "igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" que se funda em "harmonia social" trazidos no Preâmbulo de nossa Constituição Federal?
Parece-nos que não. Se o mesmo texto constitucional dispõe em seu art. 3º, I que nossa República tem como objetivo fundamental promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, o não reconhecimento de AMOR, do AFETO como formador da família e da relação de parentalidade é ir de encontro com as bases constitucionais do nosso Estado Democrático de Direito.
Este reconhecimento só iria trazer benefícios às situações fáticas que se alongam no tempo. Tratar os filhos que igualmente são amados, respeitados e queridos no meio familiar seria uma justiça social e uma confirmação de uma responsabilidade social.
Se o Direito de Família é o ramo do Direito Civil que mais influências sofre do Direito Constitucional, porque quando da confecção do atual texto de Código Civil não foram observadas tais ponderações?
Cremos que quando um homem e uma mulher, de livre e espontânea vontade resolvem acolher em seu lar uma criança e tratá-la como um filho de sangue, configura-se uma relação de maturidade e evolução do ser humano em seu meio social. O filho que porventura fora renegado/abandonado/desprezado por seus genitores não pode ser privado de ter no amor o reconhecimento de um núcleo familiar, de uma situação que lhe traga dignidade e respeito perante a sociedade.
Não nos limitamos apenas nas situações comuns e nos noticiários de nosso país, em que, infelizmente, se tornou comum ver pais abandonando crianças, mas, sim, no caso da adoção à brasileira dentro de uma mesma família (sentido lato), como no exemplo de sobrinhos terem o carinho, amor, respeito e afetividade de seus tios, e estes o tratarem como verdadeiro filho.
Restringir as relações de parentesco apenas às modalidades de consangüinidade, civil e afinidade não nos parece ser a proposta do atual Direito brasileiro, no que diz respeito às esferas Constitucional e de Família.
Os pais e filhos não são unidos apenas por laços de sangue, mas também por amor, carinho, afetividade, respeito, cuidados e sentimentos de prosperidade, uma vez que a responsabilidade e função desses verdadeiros pais afetivos são assaz importantes. Nada os vincula ou os obriga à criação e ao desenvolvimento do amor por esses filhos, mas apenas o fazem por ser esta uma vontade que surge do afeto, do amor.
Para FACHIN (2003, p. 29), "essa verdade sócio-afetiva não é menos importante do que a verdade biológica. A realidade jurídica da filiação não é, portanto, fincada apenas nos laços biológicos, mas, também, na realidade de afeto que une pais e filhos, e se manifesta em sua subjetividade e, exatamente, perante o grupo social e à família."
Poderia, então, haver uma melhoria nas legislações infraconstitucionais (em especial no atual texto de Código Civil) no sentido de adequá-las à atual realidade social, ao conceito contemporâneo de família, onde pouco importa se um filho é ou não biológico, colocando de forma expressa na lei o que a doutrina e jurisprudência já pacificaram: não há verdade biológica absoluta.
O tão mencionado AMOR já se encontra presente em algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como observamos abaixo:
EMENTA:  APELACAO. ADOCAO. ESTANDO A CRIANCA NO CONVIVIO DO CASAL ADOTANTE HA MAIS DE 9 ANOS, JA TENDO COM ELES DESENVOLVIDO VINCULOS AFETIVOS E SOCIAIS, E INCONCEBIVEL RETIRA-LA DA GUARDA DAQUELES QUE RECONHECE COMO PAIS, MORMENTE QUANDO OS PAIS BIOLOGICOS DEMONSTRARAM POR ELA TOTAL DESINTERESSE. EVIDENCIADO QUE O VINCULO AFETIVO DA CRIANCA, A ESTA ALTURA DA VIDA, ENCONTRA-SE BEM DEFINIDO NA PESSOA DOS APELADOS, DEVE-SE PRESTIGIAR A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA SOBRE A PATERNIDADE BIOLOGICA, SEMPRE QUE, NO CONFLITO ENTRE AMBAS, ASSIM APONTAR O SUPERIOR INTERESSE NA CRIANCA. DESPROVERAM O APELO. UNANIME. (Apelação Cível Nº. 70003110574, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 14/11/2001);
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EMENTA:  EMBARGOS INFRINGENTES. ACAO DE ANULACAO DE REGISTRO DE NASCIMENTO MOVIDA POR IRMAOS DO FALECIDO PAI. NO CONFLITO ENTRE A VERDADE BIOLOGICA E A VERDADE SOCIOAFETIVA, DEVE ESTA PREVALECER, SEMPRE QUE RESULTAR DA ESPONTANEA MATERIALIZACAO DA POSSE DE ESTADO DE FILHO. O FALECIDO PAI DO DEMANDADO REGISTROU-O, DE MODO LIVRE, COMO FILHO, DANDO-LHE, ENQUANTO VIVEU, TAL TRATAMENTO, SOANDO ATE MESMO IMORAL A PRETENSAO DOS IRMAOS DELE (TIOS DO REU) DE, APOS SEU FALECIMENTO, E FLAGRANTEMENTE VISANDO APENAS MESQUINHOS INTERESSES PATRIMONIAIS, PRETENDER DESCONSTITUIR TAL VINCULO. DESACOLHERAM OS EMBARGOS. ( 8 FLS ). (SEGREDO DE JUSTICA). (Embargos Infringentes Nº 70004514964, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 11/10/2002).
4. Conclusão.
A relação sócio-afetiva (conhecida também como "adoção à brasileira") necessita da existência de relação de afetividade, que o pai trate o filho como seu, sendo esta a relação reconhecida pela sociedade, não bastando que o filho use o nome do pai.
O direito à identidade de filiação é indisponível, portanto imprescritível, a teor, inclusive, do artigo 1.606 do Código Civil. Não há como destoaremos os princípios que norteiam nossa Nação e servem de fundamento para nossa Carta Política do atual contexto social e jurídico de nosso país.
As relações de família sofrem influência e proteção dos princípios e das regras constitucionais. Seus novos modos de constituição familiar passam a ser cada dia mais aceitáveis pela doutrina e decisão de juizes de primeira e segunda instância por todo o país.
As famílias formadas unicamente por relações de afeto, de amor, de carinho, traduzem, para toda a sociedade, a idéia de que certo ente familiar é filho e membro essencial à harmonia e felicidade da mesma. Essa família que se constitui sócio-afetivamente vêm sofrendo inúmeras injustiças, causadas por mero descuido ou inobservância por parte de alguns, principalmente no que se refere ao filho sócio-afetivo e à privação deste na participação na delação dos bens/direitos/obrigações de seu "pai" quando este vem a falecer.
Nosso atual texto de Código não faz menção à proibição deste reconhecimento de filiação, muito pelo contrário, deixa-nos uma brecha para que se reconheçam essas formas de constituição familiar.
Se são reconhecidas as famílias pelo afeto; se são reconhecidas filiações pelo afeto e essa hoje em dia já é motivo bastante para constituição de prestação alimentícia, por que não reconhecer direitos sucessórios para uma situação que se encontra plenamente formada, reconhecida e consolidada com o passar dos anos?
Não reconhecer essa realidade implicaria até mesmo em afronta a princípios constitucionais, às garantias trazidas ao Homem pela Carta de Direitos, aos Direitos Humanos e à Dignidade da Pessoa Humana.
5. Referências.
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Thiago Felipe Vargas Simões é sócio do IBDFAM, advogado, especialista em Direito Privado pela Univila/ES, mestre em Direito Civil pela PUC/SP e doutorando em Direito Civil pela PUC/SP. Contato: tfvsimoes@terra.com.br - Home Page: http://www.tfvsimoes.site.adv.br/