Déficit de vagas no sistema prisional brasileiro é de mais de 208 mil.
Crítica de ministro da Justiça à situação das prisões gera debate.
“O inferno não é embaixo da terra; o inferno é o presídio”. Com essas
palavras o ex-detento R.S. (*), 39 anos, definiu os 12 meses nos quais
ficou encarcerado em uma penitenciária, na cidade de São Paulo.
Na última terça (13), durante um encontro com empresários em São Paulo, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que "preferia morrer"
a ficar no sistema penitenciário brasileiro, o que gerou um debate
durante a semana sobre a situação nas prisões. “Do fundo do meu coração,
se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, eu preferia
morrer”, afirmou.
Preso por furto, o ex-detento R.S. enfrentou os piores momentos de sua
vida dividindo uma cela, com capacidade para seis pessoas, com outros 56
presos. “É horrível. Você não tem privacidade, não tem lugar para todo
mundo dormir. Ficava todo mundo no chão, no banheiro. Às vezes, tinha
que revezar, cada um dormia um pouco”, relembra.
O Brasil tem hoje uma população carcerária de 514.582 presos, a
despeito de existir uma capacidade projetada para 306.497 detentos. Isso
significa um déficit de 208.085, segundo dados de dezembro de 2011 do
Departamento Penitenciário Nacional (Depen) -- órgão ligado ao
Ministério da Justiça.
“O grande problema do sistema prisional é a superlotação. Ela impede
que o preso tenha uma vida digna. Por conta dela, os detentos acabam
tendo que brigar por necessidades básicas, por exemplo, por um lugar
onde dormir”, acredita a procuradora Paula Bajer, membro do grupo de
trabalho Sistema Prisional, da Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão, vinculado ao Ministério Público federal.
De acordo com a procuradora, a ausência de uma assistência médica aos
presos também é um problema a ser enfrentado. “Hoje, há um atendimento
médico deficiente nos presídios.” Além disso, as péssimas condições de
higiene são um grande vilão.
“Fiquei doente, porque aquele lugar é imundo, tem barata para tudo que é
lado. Tive muita tosse”, conta o ex-detento. Ele revelou ainda que
nunca passou por uma consulta médica dentro do presídio. “O único
remédio que eles dão é dipirona e laxante. Os medicamentos que tomei
foram depositados pela minha mãe no dia de visita”, afirma.
“O pior de tudo é o que eles fazem com a gente durante as revistas.
Eles batem em todo mundo com pedaços de pau, soltam bomba de gás, soltam
cachorro, jogam nossas roupas no chão”, relembra R.S. De acordo com
ele, essas sessões de violência aconteciam ao menos uma vez por mês.
Ele revela ainda a existência de drogas e celulares dentro da
carceragem. “O que mais tem é droga, de todo tipo. Tem mais lá dentro do
que aqui fora. A própria droga é um calmante para os detentos”,
explica.
Já os celulares são de uso restrito dos integrantes da facção criminosa
que age dentro e fora dos presídios. “Quem faz parte da facção tem
livre acesso a esses telefones. Eu não tinha telefone nenhum”,
acrescenta o preso.
Casado e pai de duas meninas, M.S hoje trabalha como instrutor em uma
autoescola. “Hoje sou um trabalhador registrado, não quero mais saber de
coisa errada. Tirei uma lição disso tudo que passei: coisa errada não
compensa. Não ganhei nada com isso e perdi um ano de liberdade”, afirma.
O G1 tentou entrar em contato com a Secretaria de
Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, mas ninguém atendeu
as ligações.
PresídiosPara acabar com o déficit de vagas, o
governo federal lançou, no ano passado, um plano que prevê R$ 1,1 bilhão
para a criação de vagas em penitenciárias até 2014. O dinheiro servirá
para financiar 20 mil vagas contratadas durante o governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outras 42 mil a serem
contratadas no atual governo. O problema é que, um ano após o
lançamento, nenhum presídio teve a construção iniciada, informou o
ministro da Justiça durante uma videoconferência com a imprensa, na última quarta-feira (14).
Presos provisóriosSegundo dados do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), o estado com maior percentual de presos
provisórios, aqueles que ainda aguardam julgamento, é o Rio de Janeiro
com 72%, seguido do Rio Grande do Norte (71%), Mato Grosso (70%), Mato
Grosso do Sul (66%) e Alagoas (62%). Em todo país, há 196.860 detentos
nessa condição, 39,8% do total.
Para a promotora Paula Bajer, a prisão provisória é utilizada em
excesso no Brasil. “Nas leis penais, a prisão provisória é excepcional.
Se não estiverem configurados os quesitos da prisão provisória, então a
pessoa deve ser colocada em liberdade, isso está na Constituição Federal
e nas leis.”
De acordo com ela, é preciso fazer uma varredura nos sistema prisional
brasileiro, a fim de identificar os casos em que a pessoa pode responder
em liberdade. “É necessário um exame meticuloso caso a caso para
verificar a necessidade da detenção provisória”.
O excesso de presos provisórios foi alvo da nova lei de fiança (Lei
12.403), que criou medidas cautelares com o objetivo de combater a
banalização da prisão provisória no país. No entanto, a legislação, em
vigor desde agosto de 2011, não resultou em uma diminuição na população carcerária brasileira, como acreditavam seus defensores.
A intenção da lei era não mandar para a prisão alguém que, mesmo
condenado, não seria preso (uma pena de 2 anos, por exemplo, seria
substituída por prestação de serviço à comunidade, mas em muitos casos, o
réu ficava preso mais do que isso antes de ser julgado).
MutirõesDe 2008 a 2011, o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) realizou mutirões carcerários para avaliar a situação dos
processos de presos provisórios e condenados, além da situação do
encarceramento. No período, foram analisados 415 mil processos, com o
objetivo de garantir o cumprimento da Lei de Execuções Penais e a
dignidade dos detentos.
O resultado revelou dados assustadores: 36 mil pessoas que já deveriam
estar soltas foram libertadas, e outras 76 mil em condições de receber
progressão de pena finalmente tiveram o benefício concedido. O órgão
listou ainda os problemas encontrados nas unidades prisionais, entre
eles, superlotação, condições insalubres e maus-tratos.
Em São Paulo, o relatório do CNJ aponta ainda problemas como o
inexpressivo número de análise dos benefícios de comutação e indulto;
duplicidade de condenações e de execuções derivadas de um mesmo crime;
inexistência de atendimento jurídico ao preso; e morosidade no
julgamento dos recursos.
O desrespeito às regras do regime de cumprimento da pena também é
recorrente nos presídios de São Paulo. “São raros os estabelecimentos
adequados para o cumprimento das penas em regime semiaberto e quase
inexistentes aqueles destinados ao regime aberto. Na prática, a maioria
dos apenados em regime semiaberto se submete às regras do regime
fechado”, aponta o texto.
CPI do Sistema Carcerário
Em 2008, a Câmara Federal instaurou uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para investigar os problemas do sistema carcerário no
país e apontar soluções. Após oito meses de trabalho e diligências em
102 presídios de 18 estados, o grupo constatou uma série de problemas.
“Constatamos a existência de um inferno. Não existe um sistema
carcerário no Brasil, mas sim um inferno, um caos, fragmentos de uma
bagunça generalizada”, disse o relator da CPI, deputado Domingos Dutra
(PT-MA).
A comissão também relatou os conhecidos problemas da superlotação e falta de oferta de estudo e trabalho dentro dos presídios.
O relatório chama ainda a atenção das autoridades para a acomodação
indiscriminada dos presos. “É uma salada de presos, uma mistura de
presos provisórios com sentenciados, jovens com idosos, dos que
cometeram pequenos delitos com os de alta periculosidade, de detentos
doentes com saudáveis”, afirmou o deputado, lembrando que o próprio
Código Penal estabelece uma separação por idade, sexo e tipo de pena.
Na opinião do relator, o descaso do poder público com o sistema
prisional tem um motivo: “Não encontrei nenhum colarinho branco preso em
nenhum estabelecimento penal. Não encontrei nenhum ‘granfino’. Só gente
pobre, lascada, que viveu a vida inteira na periferia.”
Ao final dos trabalhos, a CPI encaminhou um relatório discriminando os
problemas e apontando soluções aos poderes. A comissão também acabou
indiciando 36 pessoas, entre juízes, promotores e diretores de
estabelecimentos prisionais.
Foram apresentados 12 projetos de lei, que estão hoje em tramitação na
Câmara. Dois deles já foram aprovados e viraram leis: o primeiro
estabelece que, a cada três dias trabalhados pelo detendo, a pena é
reduzida em um dia. O segundo aplica o mesmo princípio ao estudo.
“A maior contribuição da CPI foi com relação à mudança de mentalidade
do poder público e da sociedade. Antes dela, só se falava do sistema
carcerário quando havia rebelião. Hoje, o Estado já se deu conta que
deve fazer uma política séria para o sistema prisional ou a segurança
pública não terá solução”, concluiu o deputado.
(*) A pedido do entrevistado, o G1 manteve em sigilo sua identidade.
Fonte: G1