O  desembargador Palma Bisson é filho de  marceneiro. Em seu gabinete, na 36ª Câmara de Direito Privado do  Tribunal de Justiça de São Paulo, ele deixa à mostra uma plaina,  ferramenta utilizada para nivelar peças de madeira. Em acórdão de 19 de  janeiro de 2006, publicado nesta semana pelo boletim da Associação dos  Advogados de São Paulo, as ligações profissionais do desembargador se  revelam. Nele, o desembargador concede o benefício da Justiça gratuita a  um também filho de marceneiro.
O voto de Bisson mudou decisão de  juiz de Marília (SP) que havia negado a gratuidade da Justiça para o  filho do marceneiro. Por isso, o rapaz entrou com o recurso em Agravo de  Instrumento. Ele apresentou uma ação de indenização contra o  motociclista que atropelou o pai, pedindo pensão de um salário mínimo  mais danos morais decorrentes da morte. O desembargador comenta: “Foi  atropelado [o pai] na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
“Que  sorte a sua menino”, escreveu Bisson em seu voto, “depois do azar de  perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro — ou sem  ele —, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de  sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do  distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar”.
A  gratuidade das custas foi pedida com base na Lei 1.060, de 1950. Como  justificativa para negar o benefício, o juiz disse que o rapaz não teria  apresentado prova de pobreza e que, no processo, ele era representado  por um advogado particular. “A circunstância de estar a parte pobre  contando com defensor particular, longe de constituir um sinal de  riqueza capaz de abalar os de evidente pobreza, antes revela um gesto de  pureza do causídico. Onde está escrito que pobre que se preza deve  procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo”, indaga  Bisson, que diz votar “como marceneiro”.
Para o desembargador, a  pensão pedida pelo autor da ação atesta sua pobreza. “Claro como a luz,  igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um  salário mínimo, pede não mais que para comer”, observa. Bisson fala  também sobre seu próprio passado: “Tantas, deveras, foram as causas  pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada,  ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d’água, de um prato  de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo  lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou”.
Leia abaixo o acórdão:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SAO PAULO – SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO
36ª Câmara
AGRAVO DE INSTRUMENTO No.1001412- 0/0
Comarca de MARILIA 2.V.CÍVEL
Processo 25124/05
AGVTE ISAIAS GILBERTO RODRIGUES GARCIA
REPRES P/S/MÃE ELISANGELA ANDREIA RODRIGUES
interessado) BENEFIC DE: Interes. EZEQUIEL AUGUSTO GARCIA
AGVDO RODRIGO DA SILVA MESSIAS (NÃO CITADO)
A C Ó R D Ã O
Vistos,  relatados e discutidos estes autos, os desembargadores desta turma  julgadora da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça, de  conformidade com o relatório e o voto do relator, que ficam fazendo  parte integrante deste julgado, nesta data, deram provimento ao recurso,  por votação unânime.
Turma Julgadora da 36* Câmara
RELATOR : DES. PALMA BISSON
2 ° JUIZ : DES. JAYME QUEIROZ LOPES
3 o JUIZ : DES. ARANTES THEODORO
Juiz Presidente : DES. JAYME QUEIROZ LOPES
Data do julgamento: 19/01/06
DES. PALMA BISSON
Relator
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA – SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO
AGRAVO DE INSTRUMENTO N° 1.001.412-0/0
COMARCA – MARÍLIA
AGRAVANTE – ISAÍAS GILBERTO RODRIGUES GARCIA (REPRESENTADO POR SUA MÃE: ELISANGELA ANDREÍA RODRIGUES)
AGRAVADO – RODRIGO DA SILVA MESSIAS (NÃO CITADO)
 
V O T O N° 5902
Ementa: Agravo de instrumento – acidente de veículo – ação de  indenização decisão que nega os benefícios de gratuidade ao autor, por  não ter provado que menino pobre é e por não ter peticionado por  intermédio de advogado integrante do convênio OAB/PGE inconformismo do  demandante – faz jus aos benefícios da gratuidade de Justiça menino  filho de marceneiro morto depois de atropelado na volta a pé do trabalho  e que habitava castelo só de nome na periferia, sinais de evidente  pobreza reforçados pelo fato de estar pedindo aquele u’a pensão de  comer, de apenas um salário mínimo, assim demonstrando, para quem quer e  consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, que o que nela tem  de sobra é a fome não saciada dos pobres – a circunstância de estar a  parte pobre contando com defensor particular, longe de constituir um  sinal de riqueza capaz de abalar os de evidente pobreza, antes revela um  gesto de pureza do causídico; ademais, onde está escrito que pobre que  se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo ?  Quiçá no livro grosso dos preconceitos… – recurso provido.
O  menor impúbere Isaias Gilberto Rodrigues Garcia, filho de marceneiro que  morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta na volta a pé do  trabalho, fez-se representado pela mãe solteira e desempregada e por  advogado que esta escolheu, para requerer em juízo, contra Rodrigo da  Silva Messias, o autor do atropelamento fatal, pensão de um salário  mínimo mais indenização do dano moral que sofreu (fls. 13/19).
Pediu  gratuidade para demandar, mas esta lhe foi negada por não ter provado  que menino pobre é e por não ter peticionado por intermédio de advogado  integrante do convênio OAB/PGE (fls. 20) .
Inconforma-se com isso,  tirando o presente agravo de instrumento e dizendo que bastava, para  ter sido havido como pobre, declarar-se tal; argumenta, ainda, que a sua  pobreza avulta a partir da pequeneza da pensão pedida e da  circunstância de habitar conjunto habitacional de periferia, quase uma  favela.
De plano antecipei-lhe a pretensão recursal (fls. 31 e V o ) , nem tomando o cuidado, ora vejo, de fundamentar a antecipação.
A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 34/37).
É o relatório.
Que  sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado  por um filho de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da  gratuidade que você perseguia.
Um dedo de sorte apenas, é verdade,  mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por  natureza, não costuma proporcionar.
Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador – legada, olha-me agora.
É  uma plaina manual feita por ele em pau- brasil, e que, aparentemente  enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem  sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão  marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados  de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel  repetido.
É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias  de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros  como ele, derretendo cola coqueiro – que nem existe mais – num velho  fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que  cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali  tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você  menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os  marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos.
São os  marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do  menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era.
Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
E  se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte  Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza  exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você,  menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que  para comer.
Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas  entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome  não saciada dos pobres.
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular.
O  ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um  sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto  de pureza do causídico.
Tantas, deveras, foram as causas pobres  que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em  certa feita, como me lembro com a boca cheia d’água, de um prato de  alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo  lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo ?
Quiçá no livro grosso dos preconceitos…
Enfim,  menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em  razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer  e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como marceneiro voto.
PALMA BISSON
Relator Sorteado
Revista Consultor Jurídico, 24 de junho de 2011