Apelação Cível n. 2009.043906-4, de Palhoça
Relator: Des. Monteiro Rocha
DIREITO CIVIL -
OBRIGAÇÕES – RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL - OFENSA À HONRA DA
AUTORA - MALEDICÊNCIAS, POR PASTOR DE ASSEMBLEIA DE DEUS, EM FRENTE A
CULTO - ACTIO DIRECIONADA CONTRA PASTOR - ILEGITIMIDADE DA ÚLTIMA
RECONHECIDA EM SENTENÇA - PROCEDÊNCIA DA AÇÃO CONTRA PASTOR -
INCONFORMISMO DO RÉU - OFENSAS IRROGADAS EM LEGÍTIMA DEFESA DA IGREJA E
DA FÉ QUE PROFESSA - ALEGAÇÃO AFASTADA - AUSÊNCIA DE PROVA DO DANO MORAL
- AFASTAMENTO - QUANTIA INDENIZATÓRIA EXACERBADA - INOCORRÊNCIA - PROVA
CONTRÁRIA À ALEGAÇÃO DO PASTOR - DANOS MORAIS PRESUMIDOS - AFETAÇÃO DA
HONRA SUBJETIVA - REPERCUSSÃO NA INTIMIDADE DA VÍTIMA - DEVER DE
INDENIZAR PATENTEADO - QUANTUM REPARATÓRIO ÍNFIMO – FALTA DE RECURSO
VOLUNTÁRIO - RECURSO IMPROVIDO - CERTIDÃO DE URH'S EM FAVOR DA ADVOGADA
DA AUTORA - REQUERENTE VENCEDORA - HONORÁRIOS ESTATAIS INDEVIDOS -
SENTENÇA REFORMADA, EM PARTE, EX OFFICIO.
Inocorre excludente de
legitima defesa quando comprovado que as ofensas proferidas por Pastor
evangélico contra autora iniciaram sem que esta tenha dirigido qualquer
palavra contra o ofensor, sua igreja ou sua crença.
Ofensa irrogada por
Pastor, em afronta aos princípios constitucionais da solidariedade, da
igualdade e da fraternidade, contra pessoa que professa outra religião,
caracteriza ato ilícito contrário à liberdade de crença religiosa da
vítima, sendo presumido o seu constrangimento moral.
Nega-se a pretensão de
reduzir o valor indenizatório fixado modicamente, pela ausência de
razoabilidade e proporcionalidade, obstando-se ainda a majoração por
falta de recurso voluntário da interessada.
Indefere-se a
remuneração estatal pelo ofício de defensoria pública - instituída em
Santa Catarina através da Lei Complementar n. 155/97 - ao advogado
constituído nos autos por procuração, mormente quando o mandante é
vencedor na causa e o réu possui condições para arcar com os honorários
fixados na sentença.
Vistos, relatados e
discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2009.043906-4, da comarca de
Palhoça (1ª Vara Cível), em que é apelante A.S., sendo apelada Z.D.M.
A Quinta Câmara de
Direito Civil decidiu, por votação unânime, negar provimento ao recurso
e, ex officio, indeferir a concessão de URH's em favor da advogada da
autora. Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Desembargadores Henry Petry Junior e Jairo Fernandes Gonçalves.
Florianópolis, 22 de março de 2012.
Monteiro RochaPRESIDENTE E RELATOR
RELATÓRIO
Na comarca de Palhoça,
Z.D.M., devidamente qualificada, ajuizou ação indenizatória contra
Igreja Assembleia de Deus e A.S., também qualificados na inicial,
alegando que, no dia 2 de março de 2006, conversava com sua filha e o
namorado desta, em frente à sua residência na rua Altino Martins, 2ª
Travessa quando o Sr. A.S., dirigente da igreja requerida que funciona
em frente à casa da demandante, saiu da entidade religiosa gritando que
"a Sr.ª Z. é filha do Diabo e que tem que se tratar com Deus" (fl. 02).
Sustenta que fiéis
participantes do culto e transeuntes, inclusive conhecidos da autora,
presenciaram os fatos, trazendo grande desconforto moral à autora, que
ficou diversos dias chorando em casa, proibida de sair da residência em
razão da vergonha que sentiu pelas maledicências praticadas pelo
requerido A.S.
Argumenta que, em
Delegacia de Polícia onde foi registrado boletim de ocorrência sobre os
fatos, o requerido confirmou as palavras que havia dito dias antes,
persistindo na conduta ilícita de denegrir a imagem e a dignidade da
autora, pelo que requereu a condenação dos réus - a Igreja Assembleia de
Deus e A.S. na condição de seu pastor - ao pagamento de indenização por
danos morais não inferior a dez mil reais, mais custas processuais e
honorários advocatícios.
Despachando a inicial, o magistrado a quo deferiu assistência judiciária gratuita à autora e determinou a citação dos réus.
Regularmente citados, os
réus, em peça única, ofereceram contestação arguindo, em preliminar, a
ilegitimidade passiva ad causam da Igreja Assembleia de Deus ao
argumento de que o requerido A.S. não é empregado, preposto ou
responsável pela congregação; estava do lado de fora da Igreja por
ocasião dos fatos; não proferia palestra alguma, sendo praticante do
credo religioso e frequentador dos cultos, porém sem possuir qualquer
atribuição de pastorado dentro da igreja ré.
No mérito, alegam os
réus a ausência de calúnia, difamação ou injúria na atitude do réu
Almiton de Souza, que se limitou a repreender provocações da autora
direcionadas aos freqüentadores da Igreja e que esta, em sua inicial,
não comprovou a ocorrência de danos passíveis de indenização, pelo que
requereram o reconhecimento da ilegitimidade passiva ad causam da igreja
ré e a improcedência do pedido inicial.
Impugnação à
contestatória às fls. 81/84. Em saneador (fl. 85), o magistrado
postergou a apreciação da preliminar de ilegitimidade passiva ad causam
para ocasião oportuna, designando audiência de conciliação, instrução e
julgamento para a oitiva da prova oral e dos depoimentos das partes.
Frustrada a tentativa conciliadora, ouviram-se testemunhas às fls. 93/98 e, posteriormente, às fls. 100/104.
Alegações finais pela
autora às fls. 107/109 e, pelos réus, às fls.112/117; aquela postulando a
procedência da ação e esses sua improcedência, com o acolhimento da
preliminar suscitada em contestação.
Sentenciando (fls.
118/132), o Magistrado a quo acolheu a preliminar de ilegitimidade
passiva ad causam em relação à ré Igreja Assembleia de Deus, condenando a
autora ao pagamento de 15% das custas processuais e honorários
advocatícios que arbitrou em duzentos reais, suspendendo a cobrança da
verba aludida em face dos benefícios da assistência judiciária gratuita
deferida em favor da autora.
Outrossim, julgou
procedente o pedido exordial em relação ao réu A.S., condenando-o ao
pagamento de danos morais no valor de hum mil e quinhentos reais,
corrigidos a partir do julgamento e com incidência de juros moratórios a
partir do ilícito, mais 85% de custas processuais e honorários
advocatícios que fixou em 20% sobre o valor condenatório.
Irresignado, apenas o
réu A.S. interpôs Recurso de Apelação (fls. 125/132), requerendo a
reforma da sentença para julgar improcedente o pedido exordial ou
reduzir o valor indenizatório fixado.
Contrarrazões às fls. 138/140.
É o relatório.
VOTO
1 Admissibilidade do recurso
A certidão de fl. 125
revela a tempestividade do recurso e a procuração de fl. 39 a
regularidade na representação processual do apelante, que por ter sido
condenado pela sentença monocrática, possui os pressupostos subjetivos
para recorrer.
2 Dever de indenizar
O art. 186 do Código
Civil descreve o ato ilícito como "aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
O dever de indenizar em
relações não contratuais, aplicável à responsabilidade civil decorrente
de ofensas verbas, decorre do disposto no art. 927 do Código Civil,
segundo o qual "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".
Tratando sobre os
pressupostos da responsabilidade civil, o desembargador e doutrinador
paulista Carlos Roberto Gonçalves pontua os quatro elementos essenciais
da responsabilidade civil extracontratual: "ação ou omissão, culpa ou
dolo do agente, relação de causalidade e o dano experimentado pela
vítima" (GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 31).
Ato lesivo é toda ação
ou omissão voluntária que viola direito ou causa prejuízo a outrem.
Culpa, a seu turno, que em sentido amplo envolve o dolo, é a vulneração a
um dever jurídico que possibilita a imputação do ilícito a alguém, em
virtude da reprovação social daí decorrente. Dano é toda lesão a bens ou
interesses juridicamente tutelados, sejam de ordem patrimonial, sejam
de ordem puramente moral (AGOSTINHO ALVIM, Da Inexecução das Obrigações e
suas Conseqüências, Saraiva, 1972, p. 172). Nexo causal é um liame
jurídico que se estabelece entre causa (fato lesivo) e conseqüência
(dano), de uma tal maneira que se torne possível dizer que o dano
decorreu daquela causa.
2.1 Tese sustentada pelo
requerido - legítima defesa Sustenta o apelante que a autora não
demonstrou nos autos o sofrimento moral capaz de gerar a indenização e,
alegando que não constitui ilícito os atos praticados em legítima
defesa, conforme assegura o disposto no art. 160, I, do Código Civil de
1916, assim justificou sua confessada atitude: "se a autora era contumaz
em ficar rindo e debochando dos membros da igreja, esta foi justamente
repelida por um membro zeloso que entendeu que aquela situação não
poderia permanecer como estava entendendo que a exortação seria a melhor
maneira de estancar a blasfêmia.
"E não foi justamente
esta ação que JESUS fez quando expulsou os vendilhões do templo enquanto
estes vilipendiavam um lugar que este acreditava que era santo-
"Então se o nosso senhor
JESUS, filho de Deus que por seu zelo a sua igreja realizou esta
atitude em que esperar de um simples pintor de paredes, mas que também
zeloso pela casa de seu Pai-
"Assim, o apelante Réu não alegou qualquer fato ofensivo à reputação da Autora, mas apenas defendeu seu credo.
"Ora, as incursões sobre
a alegação que o requerido A. a chamou de 'filha do diabo e que iria
tratar com Deus' nada mais foi do que um desabafo as provocações que a
autora já vinha fazendo contra a pessoa do Suplicado" (fl. 128 - razões
recursais).
Registra-se,
inicialmente, que em se tratando de ilícito praticado após a vigência do
Código Civil de 2002, a excludente de ilicitude arguida - legítima
defesa - está disciplinada no art. 188, I, com a ressalva do parágrafo
único do mesmo dispositivo.
Tratando sobre o conceito de legítima defesa e sua natureza jurídica, a doutrina ensina o seguinte:
"Conceito. É a repulsa,
proporcional à ofensa, no intuito de evitar que direito próprio ou de
outrem seja violado. O sistema autoriza a defesa da pessoa, de terceiro e
também dos bens de ambos, para evitar que ataque injusto cause dano à
pessoa e/ou bens. (...).
"Natureza jurídica. É
causa de exclusão da antijuridicidade do ato de defesa, tanto no direito
civil como no penal" (NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de
Andrade. Código Civil Comentado. 6ª ed. São Paulo, Revista dos
Tribunais, 2008, p. 371, notas 3 e 4 ao art. 188, I).
Juridicamente, o
apelante confessa a narrativa que deu origem ao pedido inicial, mas
qualifica-a como atitude lícita porque praticada em legítima defesa de
sua religião ou em resposta aos deboches praticados pela autora apelada.
Nem a tese de legítima defesa, nem os deboches mencionados foram provados no processo.
A prova testemunhal
consistiu em três testemunhas compromissadas e duas descompromissadas
por possuírem laços com a igreja requerida. Todas as testemunhas -
compromissadas ou não - confirmam que no dia dos fatos narrados na
inicial, o réu dirigiu-se à autora, repreendendo-a nos temos da inicial.
As testemunhas
descompromissadas afirmam que a autora debochava dos freqüentadores da
igreja ré, mas não especificam as datas em que tais deboches ocorreram
ou em que consistiram. As testemunhas compromissadas, por sua vez,
afastam essa versão, dizendo que a autora não realizava qualquer ataque
ao requerido ou à igreja ré.
De qualquer sorte, em um
dos depoimentos das testemunhas descompromissadas tem-se elemento
suficiente para afastar a tese de legítima defesa porque O.S.A.afirmou
que, no dia dos fatos, o requerido dirigiu-se à autora sem que esta
tenha dito alguma coisa ao requerido.
Neste sentido:
O.S.A., arrolada pela
Igreja - fl. 101: "(...) o requerido A. saiu do interior da Igreja e
repreendeu a autora porque esta estava invadindo nossa privacidade (...)
indagada se a autora disse algo para o requerido respondeu 'que eu
tenha visto não".
Verifica-se, portanto,
que as testemunhas que não depuseram mediante compromisso legal, não
imputam à autora qualquer prática no dia dos fatos que justificasse a
atitude do réu A.S., além de confirmarem a atitude do réu em dirigir
palavras - ofensivas ou não - à autora.
Ausente prova de que a
autora apelante estava violando (ou prestes a violar) direito do réu, de
sua crença ou de sua Igreja, não há que se falar em repulsa proporcional para evitar a violação de direito.
Assim, a tese de legítima defesa própria e de terceiro está afastada.
2.2 Dano
Quanto à alegação de
inocorrência de dano à vítima e objetivando aferir se a conduta do réu
A.S. ofendeu a honra da autora, observa-se a prova testemunhal
compromissada:
J.E.C.S.- fls. 94/95: "o
requerido A. circula[va] ao redor da autora Z., tendo proferida[o] em
diversas oportunidades a expressão 'sua filha do diabo', bem como 'você
vai se ver com Deus' (...) que além da autora e réu, também visualizou
encontra[r]-se na rua a filha daquela e o namorado da mesma; que havia
outras pessoas no interior da igreja porque era dia de culto (...) que,
ao [ser] indagada qual fora a postura da demandante quando o réu lhe
dirigiu as palavras, dizendo que nada fizera e que a autora 'só chora';
que cinco vizinhos procuraram-na questionando se tinha ouvido a
gritaria, aduzindo ter escutado; que tais vizinhos moram próximos a sua
residência (...); que entre 15 dias 1 mês após o fato, acredita que o
réu A. não mais estivesse realizando cultos naquela igreja (...); que
disseram-lhe que o requerido era pastor e dirigente da igreja, embora
nunca tenha conversado com o mesmo sobre isso; (...) indagada se a
autora fez alguma crítica à igreja, respondeu que em determinada
oportunidade perguntou-lhe 'como é que tu agüenta um barulho desses',
tendo a autora lhe respondido 'eu até gosto de ouvir os hinos, porque é a
palavra de Deus'; que desconhece qualquer ato que pudesse ter sido
realizado pela autora em desabono à igreja, sendo esta razão pela qual
não entende porque motivo ocorreu o incidente (...)".
E.D.S. - fl. 96:
"vislumbrou o demandado proferir, aos gritos, palavras ofensivas à
requerente dizendo que a mesma era 'filha do diabo' e que a mesma 'vai
se entender com Deus'; vislumbrou que a autora ficou muito nervosa após o
ocorrido, tendo as pessoas de ministrar 'água com açucar' objetivando
acalmá-la".
M.F.R.V. - fls. 97/98:
"ouviu serem proferidos diversos impropérios, dentre os quais salienta
'demônio', 'filha do demônio' e afirmando 'você vai ter um encontro com
Deus'; que no dia seguinte sua vizinha Eli informou-lhe que a discussão
envolvia a autora e o 'pastor da igreja', aduzindo que o mesmo sempre
fazia culto ali; (...) indagada sobre quais foram as reações da autora
quando lhe contou sobre os fatos, respondeu que a mesma se encontrava
'muito nervosa' (...) que durante a discussão só ouvia 'uma pessoa
gritar' (...) que nunca ouviu nenhuma crítica que a autora pudesse ter
feito à igreja; que ouvia exclusivamente a voz do requerido A.
realizando culto".
A versão apresentada na
inicial - além de confessada pelo requerido A.S. - foi comprovada no
processo por referidas testemunhas, as quais, inclusive, confirmam a
inocorrência da legítima defesa.
Aliás, a prova
testemunhal demonstra que o réu A.S. atuava, por ocasião dos fatos, como
Pastor do culto que se realizava no templo da Igreja ré.1
1 - Neste contexto,
equivocado o entendimento da sentença monocrática segundo o qual "o réu
A.S., apesar de frequentar e exercer algumas atividades na Igreja ré,
não possui nenhum vínculo empregatício ou exerce qualquer função de
direção ou comando. Desta forma, observo que no dia dos fatos o réu A.
agiu em nome próprio e não em nome da Igreja Assembleia de Deus, posto
que saiu das dependências destas e dirigiu-se à autora proferindo
algumas palavras" (fl. 119). De qualquer sorte, mantém-se a sentença de
extinção do feito em relação à ré Igreja Assembleia de Deus, até porque
não houve recurso contra a mencionada extinção.
A ofensa à honra da
autora está demonstrada porque A.S. dirigiu-lhe palavras atentatórias à
sua dignidade e, principalmente, à sua crença religiosa, que difere da
crença religiosa do réu, conforme narrativa testemunhal (a autora seria
participante da Igreja Deus É Amor).
O comportamento do réu
A.S. foi antijurídico porque ofende a liberdade de crença religiosa,
garantida pela Constituição Federal inclusive àqueles que crença alguma
desejam ter:
"Todos são iguais
perante a lide, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
"VI - é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e suas liturgias".
A República Federativa
do Brasil - laica para muitos; ecumênica para alguns - foi constituída
sob a proteção de Deus, conforme consta no preâmbulo da carta magna que,
para autores como Georges Vedel, tem caráter cogente e índole
obrigatória.
Apesar disso, a conduta
do réu não deve ser apreciada sob os preceitos da religião que pratica
ou daquela praticada pela autora.
A conduta do réu deve
ser examinada de acordo com as normas elaboradas pelo homem com o
intuito de organizar e proteger a vida em sociedade; sociedade esta, a
propósito, que assegura a liberdade de consciência e de crença de seus
concidadãos numa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
A prova demonstrou que a
autora respeitava a liberdade da Igreja ré e do apelante, inclusive
apreciando os hinos dos cultos da primeira ré por serem a Palavra de
Deus (segundo afirmado pela testemunha compromissada Josefina Eli, às
fls. 94/95); o réu apelante, ao contrário, não agiu da mesma forma,
injuriando a autora, também religiosa, ao qualificá-la como 'filha do
diabo' e afirmar que a mesma deveria ' tratar-se com deus'.
O requerido, ao
qualificar a requerente como 'filha do diabo', revelou, na condição de
ser humano e mais especialmente na situação de pastor, ser
fundamentalista, ou seja, que ele vive num mundo bipolarizado,
maniqueísta e que tudo gira exclusivamente em princípios absolutos que
se excluem entre o bem e o mal e deus e o diabo.
O julgamento realizado
pelo réu apelante acerca da postura e crença religiosa da autora, sob o
prisma religioso, não deve ser examinado neste processo.
Entretanto, do ponto de vista legal, a atitude consistiu em afronta à dignidade pessoal da autora Z. e de sua crença religiosa.
O Estado brasileiro
admite todas as crenças religiosas e proíbe manifestações contrárias a
essa liberdade. Neste sentido, o legislador infraconstitucional, para
estabelecer a eficácia da garantia constitucional antes mencionada (art.
5º, VI, da CF/88), inseriu no art. 140 do Código Penal o seguinte
parágrafo "se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a
raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa"
(art. 140, §3º, do CPC, inserido pela Lei n. 9.459/97 e com redação
alterada, posteriormente, pela Lei n. 10.741/2003).
A conduta do réu
apelante, portanto, é contrária ao direito pátrio, caracterizando-se
como conduta ilícita e, em consequência, gerando o dever de indenizar.
O ato ilícito por ele
praticado, além de atingir a honra subjetiva da apelada (circunstância
bastante para configurar o dever de indenizar), repercutiu na
vizinhança, aumentando o sofrimento experimentado pela vítima.
Como o dano não teve
repercussão patrimonial, exsurge do fato visualizado pelo juiz, que não
há necessidade de a autora comprovar os sofrimentos 'psicológicos', como
quer o réu apelante.
O constrangimento
sofrido pela autora é presumido, na hipótese, por se tratar de
constrangimento moral imposto discriminatoriamente aos seus valores
éticos, morais e espirituais.
De qualquer forma, a prova testemunhal confirma o mal estar da vítima em decorrência do ilícito perpetrado pelo suposto pastor.
Assim, tem-se que o réu
A.S., atuando como pastor da ré Igreja Evangélica Assembleia de Deus,
por ação voluntária, violou o direito de crença da autora, causando-lhe
ofensa, por discriminação e por falta de solidariedade e fraternidade ao
seu patrimônio ético. Por isso, tem o dever de indenizar a autora. É
que a discriminação experimentada pela autora foi decorrente das
palavras injuriosas desferidas pelo réu A.S., Pastor da ré Igreja
Evangélica Assembleia de Deus.
3. Quantum indenizatório
Está assentado em nosso
direito que em sede de danos morais o magistrado deve fixá-los através
dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, adotando valor que
não sirva de lucro à vítima e que não desvalorize o patrimônio moral do
ofendido.
A quantificação do dano moral deve atender à função reparatória, da qual se reveste a indenização.
Sobre o assunto, oportuno trazer à colação excerto doutrinário de Sergio Cavalieri Filho:
"Razoável é aquilo que é
sensato, comedido, moderado; que guarda uma certa proporcionalidade. A
razoabilidade é o critério que permite cotejar meios e fins, causas e
conseqüências, de modo a aferir a lógica da decisão. Para que a decisão
seja razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida seja
adequada aos motivos que a determinaram; que os meios escolhidos sejam
compatíveis com os fins visados; que a sanção seja proporcional ao dano.
Importa dizer que o juiz, ao valorar o dano moral, deve arbitrar uma
quantia que, de acordo com o seu prudente arbítrio, seja compatível com a
reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do
sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do causador
do dano, as condições sociais do ofendido, e outras circunstâncias mais
que se fizerem presentes" (in Programa de Responsabilidade Civil, 6ª
ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116).
Pondera-se que a
valoração do dano moral não se destina a quantificar materialmente a dor
vivenciada pela vítima com o ilícito. O sofrimento por ela enfrentado
possui caráter subjetivo, é imensurável, sendo impossível atribuir-lhe
valor econômico compatível. Nenhum valor, por maior que seja, será capaz
de apagar os transtornos morais ocasionados à pessoa lesada. Assim, o
montante postulado não é indenizatório porque a vítima não retorna ao
estado moral anterior ao que se encontrava antes do ilícito. O valor é
meramente reparatório e objetiva abrandar os efeitos do abalo sofrido.
Como a fixação de
indenizações em patamar elevado deve ser evitada, trago aos autos
ensinamento doutrinário do jurista Calmon de Passos, inserto em artigo
intitulado "O Imoral nas Indenizações por Dano Moral", entendendo que o
prejuízo extrapatrimonial deve ser reparado através de fundamentos
éticos e morais:
"Quando a moralidade é
posta debaixo do tapete, esse lixo pode ser trazido para fora no momento
em que bem nos convier. E justamente porque a moralidade se fez algo
descartável e de menor importância no mundo de hoje, em que o
relativismo, o pluralismo, o cinismo, o ceticismo, a permissividade e o
imediatismo têm papel decisivo, o ressarcimento por danos morais teria
que também se objetivar para justificar-se numa sociedade tão eticamente
frágil e indiferente. O ético deixa de ser algo intersubjetivamente
estruturado e institucionalizado, descaracterizando-se como reparação de
natureza moral para se traduzir em ressarcimento material, vale dizer, o
dano moral é significativo não para reparar a ofensa à honra e aos
outros valores éticos, sim para acrescer alguns trocados ao patrimônio
do felizardo que foi moralmente enxovalhado" (Revista Jus Navegandi,
2002, in www.jus.com.br).
No caso dos autos,
entendo que a quantia de hum mil e quinhentos reais fixada na sentença,
por ser de pequena monta, não corresponde proporcionalmente ao ato
praticado pelo réu.
Todavia, a autora
apelada não recorreu da sentença objetivando majorar o valor
indenizatório, razão pela qual não há motivo que justifique sua
alteração a maior ex officio, até porque a prova do processo indica que o
réu é pessoa de poucas posses.
Mantém-se a sentença no
que tange à correção monocrática a partir da sentença (Súmula 362 do
STJ), aos juros de mora a contar do evento danoso (art. 398 do CC e
Súmula 54 do STJ), bem como ao valor dos honorários advocatícios
arbitrados em favor da advogada da apelada, uma vez que não houve
recurso para alterar o percentual.
Por fim, pequena
correção deve ser feita ex officio na sentença monocrática para afastar a
remuneração estatal à procuradora que subscreveu a petição inicial, em
face do disposto no art. 17, I (ser o beneficiário vencedor na ação) e
II (apresentar-se o beneficiário com advogado constituído) da Lei
Complementar n. 155/97.
Ante o exposto, nega-se
provimento ao recurso do réu e, ex officio, indefere-se a concessão de
URH's em favor da advogada da autora.