O caso das meninas em Mato Grosso, recentemente, é emblemático.
A Prefeitura de uma das cidades de lá,
que é uma das personificações do Estado, cunhou a figura de São Jorge
nos uniformes de uma escola pública municipal, no interior do Mato
Grosso, no peito dos uniformes das crianças, como brasão oficial da
escola.
Duas meninas evangélicas se recusaram a usar o uniforme e correram o risco de não assistir às aulas.
A Defensoria Pública entrou em ação e
conseguiu que a Prefeitura confeccionasse novos uniformes para as duas,
sem os brasões católicos. O argumento jurídico foi a liberdade de
religião e a laicidade do Estado (arts. 5º, VI e 19, CF). Não foi
preciso acionar a Justiça.
O Estado não pode, realmente, apor
símbolos religiosos em uniformes públicos de crianças, nem pode apor
símbolos religiosos em quaisquer de seus órgãos, estabelecimentos e
repartições. Por uma razão muito simples: nossa CF consagra o Estado
LAICO.
A palavra laico, no dicionário Aurélio, também aparece como “leigo” e “oposto ao eclesiástico”.
Mas
o Brasil-Estado é curioso. O Estado é laico, mas os feriados em que o
Estado não trabalha são santos. Eu mesmo gosto muito de viajar no dia de
Nossa Senhora, Sexta da Paixão, Páscoa, Corpus Christi, Finados …
Aliás, os representantes do Estado também viajam muito nestes dias
santos.
O Estado é laico mas celebrou, há poucos
anos (13 de novembro de 2008), um Tratado Internacional para ofertar
aulas religiosas nas escolas públicas fundamentais. Pergunta-se: o
Estado pode celebrar um Tratado religioso? O art. 5º deste Tratado
reconhece a imunidade às igrejas católicas, embora sem eficácia
jurídica, em face da imunidade de impostos já existente, mais abaixo
mencionada. O art. 8º deste Tratado repete a assistência religiosa a
presos, que já consta do art. 5º, VII, CF. O art. 11 do Tratado prevê o
ensino religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental,
como dito. O art. 12 deste mesmo Tratado reconhece os efeitos civis do
casamento religioso. E por aí segue.
O Estado é laico mas o Judiciário, que é
o Estado, teima em não retirar, até mesmo do Plenário do STF, imagens
ou esculturas de crucifixos católicos, com ou sem Jesus Cristo pendente.
Há uma Ação Civil Pública da qual
lembramos neste momento para obrigar o Judiciário a cumprir a
Constituição e retirar os crucifixos das salas de audiência e demais
dependências suas. Ela foi julgada procedente até o momento no TJ-RS e
há decisão igualmente favorável ao Estado laico no RJ, em outra ação
local.
Todavia, uma ação foi julgada
improcedente pelo TJ/SP, ao argumento de que o crucifixo é apenas um
“enfeite” que não teria significado algum para quem o mirasse e seguisse
outra religião.
Numa outra Ação Civil Pública intentada
pelo MPF em SP, a Juíza de primeiro grau denegou a liminar ao argumento
de que o crucifixo, para os ateus e demais religiosos, seria como um
“quadro, um adereço ou escultura”, e que, portanto, não ofenderia
ninguém nas repartições do Judiciário (ACP 2009.61.00.017604-0).
Há notícias de outra ação (todas elas
facilmente encontráveis na internet), intentada por cidadão que se
sentiu ofendido com o crucifixo no TRE-SP, que ainda pende de
julgamento, sendo improcedente até o momento.
Ora, se os 3 Poderes são iguais, isto é,
igualdade, harmonia e independência do ponto de vista material, a
partir do momento que a Prefeitura no interior de Mato Grosso retira o
São Jorge dos brasões dos uniformes e o TJ-RS avança, da parte do
Judiciário, exigindo o cumprimento da Constituição, o Judiciário por
inteiro deveria seguir o mesmo rumo (se bem que a escola municipal do
Mato Grosso ainda se chama “Escola Municipal São Jorge” …). Decisões
pipocadas em um ou outro sentido pelo Brasil causam insegurança
jurídica. O STF em breve será chamado a explicar a extensão da laicidade
estatal e unificar a questão.
O art. 13, CF, assevera claramente quais
são os símbolos oficias da República: bandeira, hino, armas e selo
nacional. O crucifixo ou a foto de um cantor famoso não são símbolos
estatais. As repartições públicas devem ostentar apenas símbolos do
Estado. Como ficaria a situação do indivíduo que entrasse num recinto
público ou sala de audiência e se deparasse com a figura de um cantor
famoso, mas não o seu predileto, bem em cima da mesa da autoridade
pública? A autoridade pública, aliás, em qualquer dos seus uniformes, é
paga por todos nós. Os servidores não são pagos para ter opinião, porque
sua opinião é vinculada à lei e CF.
Veja, caro(a) amigo(a) leitor(a),
ostentar um símbolo religioso é mostrar preferência, e o Estado laico
não pode mostrar preferência.
Imaginem ser abordado por Policial Militar exibindo o penteado da moda?
O art. 19 da CF é tão claro, mas tão
claro que, se ficar mais claro ainda corremos o risco de ficar cegos:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Todos sabemos que o Preâmbulo da CF não é
norma constitucional e nem faz parte da CF. Nele sim poderíamos
vislumbrar o lugar adequado para a pequena mensagem religiosa que, de
fato, ele carrega, a mostrar um hábito religioso da maioria do povo
brasileiro, mas que não tem força nenhuma, nem é norma moral nem
jurídica.
Se o art. 5º, VI, CF, assegura a
liberdade total de crença e religião, então o Estado deve se manter
neutro. Quanto mais neutro, maior minha liberdade. É o triunfo das
liberdades fundamentais sobre a velha monarquia religiosa, teocrática e
oligárquica (e, muitas vezes, despótica).
Não há feriados judeus, muçulmanos, etc
no Brasil. Recentemente, porém, o Legislativo Federal criou o dia do
Buda (Lei nº 12.623/12 – todo segundo domingo de maio). Parece que
estamos, divertidamente, diante de uma salada religioso-normativa (dias
santos, dias católicos, dia do Buda, que é igual ao dia das mães, mas
não são feriados os dias judaicos, etc).
Os católicos, por enquanto, são os
queridos do Estado, mas um dia poderão perder terreno. Enquanto
queridos, gozam de privilégios não raro inconstitucionais. A palavra
“privilégio” está também no dicionário Aurélio como “permissão especial”
ou “vantagem que exclui outrem”.
Imaginem um judeu sendo julgado bem debaixo do crucifixo de uma sala
de audiência ou do crucifixo que vemos todo dia na TV, situado bem no
meio do Plenário do STF (atrás da cadeira do Presidente)? Assim, penso
que as meninas de Mato Grosso fizeram bem. Sempre anda bem aquele que
afasta o que lhe causa desconforto espiritual.
O art. 210, CF, permite o ensino
religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental. O art.
226, CF, novamente imbrica religião e Estado ao permitir efeitos civis
ao casamento religioso.
E a própria Constituição, ela mesma rasgando-se a si mesma, a Constituição, em seu artigo 213, permite subvenção a escolas religiosas (o art. 19 veda qualquer tipo de subvenção a escolas religiosas) – vemos no texto do art. 213 a palavra “confessional”.
Por fim, um privilégio tributário à
religião: templos de qualquer culto não pagam impostos (art. 150, VI,
“b”, CF). Uma pequena salva de palmas ao Constituinte Originário,
aqui,entretanto, quando condicionou esta imunidade tributária somente às
finalidades essenciais dos templos religiosos (art. 150, § 4º, CF).
A questão refere-se, portanto, ao locus. O Estado é locus
de poder, e não de religião. Nem vamos, aqui, lembrar dos ateus, que
são criaturas esquecidas por natureza, tanto pela Constituição quanto
pelas religiões.
Todos os argumentos do Estado e
Estado-Judiciário para permitir crucifixos e imagens católicas nos
órgãos públicos e salas de audiência (inclusive no STF) é que esses
“adereços” são meros “enfeites” que não incomodam ninguém.
O São Jorge das meninas de Mato Grosso incomodou-as e a Prefeitura (escola pública) voltou atrás.
Andou bem a Prefeitura. Andaram bem as meninas. Anda sempre bem quem combate e afasta um desconforto espiritual.
Se as imagens católicas são, realmente,
meros “enfeites”, por que o STF não substitui seu crucifixo pelo símbolo
de um time de futebol? Ora, futebol, por essas terras, é mais
importante que religião.
A bandeira ou brasão do último time
campeão de cada ano bem no meio do Plenário do STF seria um mero enfeite
futebolístico. Será que incomodaria alguém?
Fonte: Antonio Pires
Procurador da Fazenda Nacional-SP. Especialista em Direito Tributário. Especialista em Formação de Professores. Mestre em Direito. Professor de Direito Constitucional e Direito Tributário da UNIP-SP (há 10 anos) e Professor de Direito Constitucional, Teoria do Direito e Ciência Política da FMU-SP. |
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