domingo, 20 de maio de 2012

Estado e Religião

O caso das meninas em Mato Grosso, recentemente, é emblemático.

A Prefeitura de uma das cidades de lá, que é uma das personificações do Estado, cunhou a figura de São Jorge nos uniformes de uma escola pública municipal, no interior do Mato Grosso, no peito dos uniformes das crianças, como brasão oficial da escola.

Duas meninas evangélicas se recusaram a usar o uniforme e correram o risco de não assistir às aulas.

A Defensoria Pública entrou em ação e conseguiu que a Prefeitura confeccionasse novos uniformes para as duas, sem os brasões católicos. O argumento jurídico foi a liberdade de religião e a laicidade do Estado (arts. 5º, VI e 19, CF). Não foi preciso acionar a Justiça.

O Estado não pode, realmente, apor símbolos religiosos em uniformes públicos de crianças, nem pode apor símbolos religiosos em quaisquer de seus órgãos, estabelecimentos e repartições. Por uma razão muito simples: nossa CF consagra o Estado LAICO.

A palavra laico, no dicionário Aurélio, também aparece como “leigo” e “oposto ao eclesiástico”.

Mas o Brasil-Estado é curioso. O Estado é laico, mas os feriados em que o Estado não trabalha são santos. Eu mesmo gosto muito de viajar no dia de Nossa Senhora, Sexta da Paixão, Páscoa, Corpus Christi, Finados … Aliás, os representantes do Estado também viajam muito nestes dias santos.

O Estado é laico mas celebrou, há poucos anos (13 de novembro de 2008), um Tratado Internacional para ofertar aulas religiosas nas escolas públicas fundamentais. Pergunta-se: o Estado pode celebrar um Tratado religioso? O art. 5º deste Tratado reconhece a imunidade às igrejas católicas, embora sem eficácia jurídica, em face da imunidade de impostos já existente, mais abaixo mencionada. O art. 8º deste Tratado repete a assistência religiosa a presos, que já consta do art. 5º, VII, CF. O art. 11 do Tratado prevê o ensino religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental, como dito. O art. 12 deste mesmo Tratado reconhece os efeitos civis do casamento religioso. E por aí segue.

O Estado é laico mas o Judiciário, que é o Estado, teima em não retirar, até mesmo do Plenário do STF, imagens ou esculturas de crucifixos católicos, com ou sem Jesus Cristo pendente.

Há uma Ação Civil Pública da qual lembramos neste momento para obrigar o Judiciário a cumprir a Constituição e retirar os crucifixos das salas de audiência e demais dependências suas. Ela foi julgada procedente até o momento no TJ-RS e há decisão igualmente favorável ao Estado laico no RJ, em outra ação local.

Todavia, uma ação foi julgada improcedente pelo TJ/SP, ao argumento de que o crucifixo é apenas um “enfeite” que não teria significado algum para quem o mirasse e seguisse outra religião.

Numa outra Ação Civil Pública intentada pelo MPF em SP, a Juíza de primeiro grau denegou a liminar ao argumento de que o crucifixo, para os ateus e demais religiosos, seria como um “quadro, um adereço ou escultura”, e que, portanto, não ofenderia ninguém nas repartições do Judiciário (ACP 2009.61.00.017604-0).

Há notícias de outra ação (todas elas facilmente encontráveis na internet), intentada por cidadão que se sentiu ofendido com o crucifixo no TRE-SP, que ainda pende de julgamento, sendo improcedente até o momento.

Ora, se os 3 Poderes são iguais, isto é, igualdade, harmonia e independência do ponto de vista material, a partir do momento que a Prefeitura no interior de Mato Grosso retira o São Jorge dos brasões dos uniformes e o TJ-RS avança, da parte do Judiciário, exigindo o cumprimento da Constituição, o Judiciário por inteiro deveria seguir o mesmo rumo (se bem que a escola municipal do Mato Grosso ainda se chama “Escola Municipal São Jorge” …). Decisões pipocadas em um ou outro sentido pelo Brasil causam insegurança jurídica. O STF em breve será chamado a explicar a extensão da laicidade estatal e unificar a questão.

O art. 13, CF, assevera claramente quais são os símbolos oficias da República: bandeira, hino, armas e selo nacional. O crucifixo ou a foto de um cantor famoso não são símbolos estatais. As repartições públicas devem ostentar apenas símbolos do Estado. Como ficaria a situação do indivíduo que entrasse num recinto público ou sala de audiência e se deparasse com a figura de um cantor famoso, mas não o seu predileto, bem em cima da mesa da autoridade pública? A autoridade pública, aliás, em qualquer dos seus uniformes, é paga por todos nós. Os servidores não são pagos para ter opinião, porque sua opinião é vinculada à lei e CF.

Veja, caro(a) amigo(a) leitor(a), ostentar um símbolo religioso é mostrar preferência, e o Estado laico não pode mostrar preferência.

Imaginem ser abordado por Policial Militar exibindo o penteado da moda?

O art. 19 da CF é tão claro, mas tão claro que, se ficar mais claro ainda corremos o risco de ficar cegos: “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Todos sabemos que o Preâmbulo da CF não é norma constitucional e nem faz parte da CF. Nele sim poderíamos vislumbrar o lugar adequado para a pequena mensagem religiosa que, de fato, ele carrega, a mostrar um hábito religioso da maioria do povo brasileiro, mas que não tem força nenhuma, nem é norma moral nem jurídica.

Se o art. 5º, VI, CF, assegura a liberdade total de crença e religião, então o Estado deve se manter neutro. Quanto mais neutro, maior minha liberdade. É o triunfo das liberdades fundamentais sobre a velha monarquia religiosa, teocrática e oligárquica (e, muitas vezes, despótica).

Não há feriados judeus, muçulmanos, etc no Brasil. Recentemente, porém, o Legislativo Federal criou o dia do Buda (Lei nº 12.623/12 – todo segundo domingo de maio). Parece que estamos, divertidamente, diante de uma salada religioso-normativa (dias santos, dias católicos, dia do Buda, que é igual ao dia das mães, mas não são feriados os dias judaicos, etc).
 
Os católicos, por enquanto, são os queridos do Estado, mas um dia poderão perder terreno. Enquanto queridos, gozam de privilégios não raro inconstitucionais. A palavra “privilégio” está também no dicionário Aurélio como “permissão especial” ou “vantagem que exclui outrem”.

Imaginem um judeu sendo julgado bem debaixo do crucifixo de uma sala de audiência ou do crucifixo que vemos todo dia na TV, situado bem no meio do Plenário do STF (atrás da cadeira do Presidente)? Assim, penso que as meninas de Mato Grosso fizeram bem. Sempre anda bem aquele que afasta o que lhe causa desconforto espiritual.

O art. 210, CF, permite o ensino religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental. O art. 226, CF, novamente imbrica religião e Estado ao permitir efeitos civis ao casamento religioso.

E a própria Constituição, ela mesma rasgando-se a si mesma, a Constituição, em seu artigo 213, permite subvenção a escolas religiosas (o art. 19 veda qualquer tipo de subvenção a escolas religiosas) – vemos no texto do art. 213 a palavra “confessional”.

Por fim, um privilégio tributário à religião: templos de qualquer culto não pagam impostos (art. 150, VI, “b”, CF). Uma pequena salva de palmas ao Constituinte Originário, aqui,entretanto, quando condicionou esta imunidade tributária somente às finalidades essenciais dos templos religiosos (art. 150, § 4º, CF).

A questão refere-se, portanto, ao locus. O Estado é locus de poder, e não de religião. Nem vamos, aqui, lembrar dos ateus, que são criaturas esquecidas por natureza, tanto pela Constituição quanto pelas religiões.

Todos os argumentos do Estado e Estado-Judiciário para permitir crucifixos e imagens católicas nos órgãos públicos e salas de audiência (inclusive no STF) é que esses “adereços” são meros “enfeites” que não incomodam ninguém.

O São Jorge das meninas de Mato Grosso incomodou-as e a Prefeitura (escola pública) voltou atrás.

Andou bem a Prefeitura. Andaram bem as meninas. Anda sempre bem quem combate e afasta um desconforto espiritual.

Se as imagens católicas são, realmente, meros “enfeites”, por que o STF não substitui seu crucifixo pelo símbolo de um time de futebol? Ora, futebol, por essas terras, é mais importante que religião.

A bandeira ou brasão do último time campeão de cada ano bem no meio do Plenário do STF seria um mero enfeite futebolístico. Será que incomodaria alguém?

Fonte: Antonio Pires


Procurador da Fazenda Nacional-SP. Especialista em Direito Tributário. Especialista em Formação de Professores. Mestre em Direito. Professor de Direito Constitucional e Direito Tributário da UNIP-SP (há 10 anos) e Professor de Direito Constitucional, Teoria do Direito e Ciência Política da FMU-SP.

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