Ultimamente, a comunidade jurídica debate muito acerca do projeto do novo Código de Processo Civil.
Porém, existe um tema que, diariamente, aflige um número bem maior de
jurisdicionados e causa problemas tão ou mais graves que aqueles
decorrentes do vigente CPC: a lei 9.099/95
e os problemas decorrentes de sua aplicação. A lei referida, com quase
18 anos de vigência, tem gerado inúmeros transtornos para os
jurisdicionados. Principalmente para aqueles que figuram na posição de
réus.
Entre os vários problemas existentes nos juizados
especiais, certamente um dos principais é a violação do princípio da
igualdade. Como bem registrado na doutrina, “quem vivencia os Juizados
Especiais Cíveis na atualidade pode constatar a violação flagrante do
princípio da igualdade nos Juizados Especiais. Não seria exagero dizer
que o réu já entra derrotado no procedimento sumaríssimo, criando-se
verdadeiro processo civil do autor” (Miranda Netto, Fernando Gama de, in
Juizados Especiais Cíveis entre autoritarismo e garantismo).
Nos Juizados Especiais, as sentenças raramente são
fundamentadas de forma adequada. Por força da regra do artigo 46 da lei
9.099/95, quando tais decisões são confirmadas nas Turmas Recursais,
pelos seus próprios fundamentos, "a súmula do julgamento servirá de
acórdão". Isso leva ao absurdo, pois muitas vezes os inexistentes
fundamentos da sentença servem de "fundamento" para a sua confirmação.
Uma loucura.
As decisões judiciais proferidas nesses Juizados são
cada dia mais lacônicas, superficiais e produzidas em série, servindo
uma mesma decisão para vários processos, por mais diferentes que sejam
as questões debatidas nos autos. A regra do artigo 38 da lei 9.099/95,
que exige que a sentença mencione os elementos de convicção do juiz, não
pode ser interpretada de forma a permitir que o processo seja julgado
sem que as teses relevantes da defesa sejam examinadas.
Liebman teve a oportunidade de dizer que "tem-se como
exigência fundamental que os casos submetidos a juízo sejam julgados
com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente;
e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente
dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que
percorreu para chegar à decisão a que chegou. Só assim a motivação
poderá ser uma garantia contra o arbítrio" (Liebman, Enrico Tullio, in
Do arbítrio à razão — reflexões sobre a motivação da sentença). Tal
orientação, ainda atual, deveria pautar os julgamentos realizados nos
Juizados Especiais, onde, cada dia mais, o arbítrio tem se tornado a
regra.
A gratuidade do processo para o autor da ação é outro
ponto que merece ser revisto. Hoje tentar a sorte em uma ação infundada
nos juizados especiais é melhor do que jogar na Mega-Sena, uma vez que
nas loterias é preciso pagar para apostar. A banalização do instituto do
dano moral e a judicialização das relações de consumo, quando somadas à
disposição contida no artigo 54 da lei 9.099/95, geram como resultado a
multiplicação dos processos nos Juizados Especiais. Atualmente,
qualquer aborrecimento ou dissabor dá origem a uma ação de indenização
por dano moral.
Se não bastassem os graves problemas já listados —
para falar apenas de alguns — existe ainda outro, identificado pela
doutrina como sendo um "ativismo judicial distorcido, decorrente da
postura de certos magistrados de realizar sua visão de justiça a
qualquer custo, em franco confronto com a legislação, com o entendimento
dos tribunais a que se vinculam administrativamente e até com a
jurisprudência do STJ e STF" (Quintas, Fábio Lima, in A jurisdição do
Superior Tribunal de Justiça sobre os Juizados Especiais Cíveis —
Antecedentes, perspectivas e o controle por meio da reclamação).
Inúmeras são as decisões proferidas diariamente nos
Juizados Especiais violando normas de lei federal e divergindo do
entendimento dos tribunais a que se vinculam administrativamente. O
mesmo se dá em relação à jurisprudência do STJ e STF, costumeiramente
ignorada nos Juizados Especiais, que, sem o menor pudor, julgam milhares
de casos em desacordo com o posicionamento das cortes superiores.
Já passa do tempo de se modificar a lei 9.099/95 para
nela incluir mecanismos de controle das decisões proferidas nos
Juizados Especiais, de forma a permitir a revisão de tais julgados
quando contrários à jurisprudência do STF e, principalmente, do STJ e
dos tribunais a que esses juízos se vinculam. Não se pode mais tolerar
que o mesmo tema seja decidido nos Juizados Especiais de forma
totalmente diversa do entendimento do STJ sobre a matéria. Porém, caso
não seja modificada a lei, muito em breve, diante da multiplicação de
reclamações no STJ contra decisões de Juizados Especiais, iremos
assistir à criação, pela jurisprudência, de obstáculos à admissão de
tais reclamações.
Não se pode negar a importância dos Juizados
Especiais, que, hoje, certamente, devem responder pelo julgamento de
quase metade dos litígios cíveis. É inegável também a existência, nesses
juízos, de muitos magistrados sérios e comprometidos com a solução dos
litígios que lhe são levados à apreciação. Contudo, é urgente a
realização de uma revisão da lei 9.099/95, de forma a corrigir os
problemas decorrentes da sua aplicação.
O saudoso baiano J. J. Calmon de Passos chegou a
afirmar que os Juizados Especiais eram "uma arena gratuita para brigas
de galos jurídicas, custeada a diversão com os recursos arrecadados do
pagamento de impostos pelos contribuintes" (Calmon de Passos, J.J., in
Reforma do Poder Judiciário — Revista Brasileira de Ciências Criminais).
De outro lado, o ministro Luiz Fux chegou a tratar esses juízos como
“um sonho de Justiça”. O tempo dirá quem tem razão. Porém, se mudanças
na lei não forem realizadas, muito em breve os Juizados Especiais se
tornarão um pesadelo de Justiça.
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* Ulisses César Martins de Sousa é conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e sócio do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados
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